Submergindo no romance “Manhã Submersa”
O livro “Manhã submersa” pode não ser o melhor dos 47
publicados pelo escritor português Vergílio Ferreira – cujo centenário de
nascimento vem sendo celebrado neste ano de 2016 –, mas é o mais conhecido dos
que escreveu e publicou. Aliás, esse tipo de juízo de valor é sumamente
subjetivo, principalmente quando se trata de avaliar a obra de um autor tão
prolífico e de qualidade linearmente superior. Posso achar, por exemplo, por
critérios estritamente pessoais, determinada publicação excelente. Já outro
leitor pode achá-la monótona, ou óbvia, ou cansativa ou outra coisa qualquer
que a deprecie e a torne detestável. Qual das duas opiniões seria a correta?
Provavelmente, nenhuma. Ou, em alguns casos, ambas. O tal livro pode apresentar
virtudes que para mim sejam fundamentais e defeitos que para o outro leitor
deste meu exemplo sejam contundentes e deploráveis.
No caso de “Manhã submersa”, considero-a uma obra
fascinante, destas que recomendo aos meus leitores sem pestanejar. É o melhor
livro de Vergílio Ferreira? Não sei! Pode ser que sim, pode ser que não.
Afinal, não tive o privilégio de ler os outros 46 que publicou. Não tenho,
pois, elementos objetivos de comparação. Todavia, é do meu pleno agrado, por uma
série de razões, tanto pelo conteúdo, quanto pelo estilo do vitorioso escritor.
A julgar, todavia, pela forma com que o próprio autor tratou esse livro,
concluo (talvez afoitamente) que ele não era do seu pleno agrado. Tanto que
“Manhã submersa” foi publicado, pela primeira vez, quase vinte anos após ser
escrito, em 1954. É verdade que teve, depois, várias republicações.
Notadamente, depois de ser adaptado para o cinema, em 1980, por Lauro Antonio,
filme que foi grande sucesso de bilheteria em Portugal.
Se Vergílio não gostava desse livro, deve ter mudado de
idéia quando concordou que se fizesse sua versão cinematográfica. Tanto que,
embora não tendo experiência e formação na arte de representar, foi o “galã”
dessa bem sucedida produção, interpretando um dos principais papeis: o do
Reitor do Seminário onde a história se desenrola (único personagem do livro,
aliás, que não é identificado pelo nome), contracenando com astros e estrelas
consagrados do cinema português, como Eunice Munhoz, Canto e Castro, Jacinto
Ramos e Carlos Wallenstein. Quem assistiu ao filme garante que Vergílio
Ferreira deu um show de interpretação. E de onde tirei a idéia de que ele não
morria de amores pelo livro que ele próprio escreveu? Desta declaração dele
próprio: “Oh, não, não gosto muito do livro, mas (...) ninguém diz mal de seus
livros”.
O crítico português Júlio Pinheiro, na meticulosa análise
que fez dessa obra na revista “Síntese”, publicada em 7 de março de 2008,
atribui seu sucesso, sobretudo após o 25 de abril de 1974, data da “Revolução
dos Cravos Vermelhos”, que depôs a ditadura de quatro décadas do general
Antonio de Oliveira Salazar – e que redundou em fartas vendas do romance e
determinou sucessivas tiragens – a três fatores fundamentais: “à consideração e
fama do autor; ao filme de Lauro Antonio e ao aproveitamento político da obra
como um ataque à Igreja e à educação nos seminários”. Meu motivo para apreciar
tanto esse livro não é nenhum desses. É a fidelidade com que o autor descreve
como é a vida em um internato, com seus vários tipos – professores, colegas,
funcionários – e comportamentos – dramas e comédias, amizades, amores, ódios
etc.etc.etc.
Quem leu “O Ateneu”, de Raul Pompeia, sabe como é essa
realidade. Sabe-a melhor, logicamente, quem já foi interno. Eu fui. Passei
parte considerável da minha vida internado em colégios bem diferentes, mas
todos com algo em comum. E esse “algo” é apresentado com bastante fidelidade e
realismo por Vergílio Ferreira em seu livro. Júlio Pinheiro escreve o seguinte
sobre esse romance autobiográfico: “A Manhã Submersa recorda a vida passada por
António Lopes, o alter-ego de Vergílio Ferreira, no pequeno Seminário da
Diocese da Guarda, situado junto às Donas e ao Fundão. O narrador foca um
passado vivido com tal intensidade que se torna presente em direção a um
futuro. Não se trata de uma memória qualquer, mas de uma memória interrogativa,
angustiante, por vezes trágica, analisando a consciência como Dostoievski,
dando menos valor à visão sociológica tão querida por Balzac. A memória vive
entre a realidade e o imaginário”.
Destaque-se que o escritor passou seis anos da sua vida –
dos doze aos dezoito anos – nesse mesmo seminário que transformou em cenário do
seu romance, misturando fatos e personagens verídicos (posto que estes últimos
com nomes trocados), com ficção e fantasia. O livro é tão complexo que merece
análise mais meticulosa, que me proponho a fazer oportunamente. Encerro,
todavia, estes comentários à margem com a seguinte constatação do crítico Júlio
Pinheiro: “Uma certeza nos resta. Sendo da Beira, Vergílio foi um inquieto,
vivendo sempre à beira de... à beira da montanha, das coisas, de si mesmo, da
religião, do homem, do mundo. Nunca esteve em, paralisado, mas em movimento, à
beira de. Também Manhã Submersa é uma obra à beira de, com personagens em
mudança, fazendo variadas viagens no espaço e no tempo. Sendo assim também nós
ficamos à beira de... à beira do autor, à beira das suas ideias. Neste modo de
estar reside toda a grandeza de Vergílio Ferreira que pela sua inquietação
viverá para sempre à beira do intemporal. Por tudo isto, o melhor que podemos
fazer não é interrogar Vergílio, mas simplesmente interrogar-nos”.
Boa leitura.
O Editor.
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