Punhalzinho cravado de ódio
* Por
Nilto Maciel
Caminha Ana pelo beco esburacado, perninhas de embuá, doida para
alcançar a esquina. Saltita, feito catita, de ilha em ilha, com medo de se
afogar nas poças de lama. Cachorros sonolentos abrem os olhos para sua figura
miúda e se espreguiçam e expõem as indecências encarnadas de entre as pernas.
Voltam a sonhar, sérios, acanhados, magros.
– Cambada de vagabundos!
O sol assa a areia, os pesinhos
gordos da anã, racha a taipa dos casebres, os lábios da mulher, reluz nos cacos
de vidro expostos no meio da rua, nos olhos da caminhante.
– Arre égua!
Abertas as portas da bodega de Bodinho, anunciada
por placas de Coca-Cola. Dentro, moscas fartas, catinga de cachaça, salpicada
de escarros, sortida de mil mantimentos para gentes e bichos.
Venta para todas as bandas e tudo se mexe, remexe,
rebola, remoinha. Os vira-latas acordam raivosos, voa poeira entre as casas,
papéis de embrulho viram arraias bicós e o bodegueiro pragueja.
E vão embora gritos, pules de jogo do bicho,
esperanças, tudo em fuga pelos becos. Do lado de dentro do balcão, Bodinho
arruma jornais de ontem e inventa pragas contra o diabo da ventania. Sunga as
calças e a pança balança, fofa, mole, cheia. Zunem moscas alvoroçadas. Pousam
nos braços curtos da freguesa, pegajosas. Fazem cócegas na pele grossa de Ana.
– Desgruda, desgraçada!
Pela porta atrás da anã entra Pêu, arreganha os
dentes podres. Estica as pernas, pula para um caixão de sabão, quase a roçar
nos cabelos de Ana. Atrás do balcão, Bodinho assobia e ri.
Solta na buraqueira desde os tempos de chupeta,
Anazinha meteu-se cedo nos becos da molecagem. Anãzinha praqui, Aninha pracá,
conheceu um a um os moleques do Pirambu. Com Pêu experimentou as primeiras
dores.
– Casar? Nunquinha.
Também nunca pegou barriga de nenhum cabra safado,
muito menos de Pêu.
– Ainda bem.
E não teve a sorte de conhecer um de seu tamanho,
de feitio anão, do jeito de seu agrado.
Mãozinhas postas sobre o cocô das moscas, pede a
anã o milho de suas galinhas. Depressa, enquanto o cão esfregasse o olho.
Todo santo dia, quer chovesse, quer fizesse sol, ia
Ana comprar a janta de suas criações. Bodinho nem precisava perguntar o que
queria ela. Precisasse de querosene para as lamparinas, voltava noutra hora ou
dormia no escuro. Carecesse de alimento para si, passava fome ou dava outra
viagem, embora os cachorros da rua vivessem a espiá-la do rés do chão.
– Cambada de vagabundos!
Como não se vissem frente a frente desde os tempos
das sacanagens, Pêu coçou o queixo, lambeu os bigodes sujos, futricou os ovos e
não pediu cachaça: se Aninha comia milho.
Toda a raça do Pirambu sabia de sua predileção por
galinhas. Na bodega de Bodinho só ela comprava milho. Todo dia, tarde cedo.
Criava as bichinhas com fartura e amor, sem sovinice de nada. Muitas. E só não
possuía o maior galinheiro do mundo porque precisava vender sempre uma para dar
de comer às outras. A preço de banana, mais baratas do que bolo em fim de
festa. Não, nunca comeu sequer o pé de uma.
– Deus me livre!
Ri Pêu da sabedoria da anã e pede uma talagada.
Desapeia do caixão e encosta-se à antiga companheira de sacanagens detrás dos
morros de areia. O bodegueiro demora-se a ver os olhos reluzentes de Ana,
aquele fogo a queimar seus jornais velhos, aquela pua a furar o outro freguês.
Já ida pela casa dos trinta, a anã não rompia as
fronteiras do metro, mas a cada dia se alargava, feito um saco de algodão. Sua
boca armazenava todos os ódios do Pirambu e, quando não suportava mais
contê-los, não escolhia as caras e cuspia insultos até contra os vira-latas.
– Perdeu alguém parecido comigo, baitola?
Entrega Bodinho o embrulho de milho, apanha a
garrafa, sem despregar da anã os olhos, derrama veneno no copo e levanta a taça
de vencedor.
Nenhuma palavra sobe do porão de Ana, que agarra
sua ração, agacha-se e a deposita ao pé do balcão. Pêu despeja goela adentro
toda sua vida e solta um grito de terror.
Em sua virilha, um punhalzinho enferrujado e cheio
de ódio acabava de se cravar.
*
Escritor cearense.
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