Caio Gakran
* Por
Urda Alice Klueger
Hoje eu chorei de
emoção. Um povo antigo aqui da minha terra continua fazendo seu resgate na
História de forma linda e acelerada, e hoje houve outro grande fato que
iluminou os horizontes deste vale aonde vivo e me deixou cheia de orgulho e de
alegria.
Foi com o Caio, mas eu
só vou falar dele mais para a frente. Quero contar, primeiro, um pouquinho
sobre o seu povo, o antigo dono desta terra onde hoje eu piso e tantos pisam,
terra que já era do povo de Caio pelo menos há 5.000 anos, conforme cerâmicas
descobertas já neste milênio pelo arqueólogo Marco Antônio Nadal de Masi .[1]
Valente povo!
Conservou seu território no passado mais distante e se aferrou a ele nos
últimos 500 anos, desde quando por aqui começaram a aparecer os europeus e seus
descendentes: primeiro os invasores portugueses, depois os imigrantes alemães,
italianos e outros, sequiosos por terra, cada um a roubar o que era possível do
vasto território da gente que vivia segundo costumes antigos, integrada na
natureza. Estou falando do povo Xokleng-Lãklanô, primeiro habitante da maior
parte de Santa Catarina e de um pouco dos dois estados vizinhos,
caçadores-coletores que tinham como alimento-base o pinhão, que o invasor quase
iria extinguir na sua sede por madeira.
Com seu território
paulatinamente cada vez menor e suas fontes de alimento, consequentemente,
também cada vez mais ínfimas, o Xokleng-Lãklanô resistiu bravamente ao contato
com o branco invasor que, além de lhe roubar as terras e a comida, empreendeu
tal caçada humana institucionalizada, com os horrores cometidos devidamente
contados nos jornais da época, que o município de Blumenau, por exemplo, no
alvorecer do século XX, foi parar no Tribunal de Haia[2], acusado de genocídio.
Houve um momento, já
no século XX, que aconteceu o que o branco chama de “apaziguamento”, expressão
vil para se denominar o submetimento do povo antigo pelo invasor – esse contato
com o “branco” vai resultar em mais diversas formas de dizimação dos
submetidos, como a contaminação por doenças trazidas da Europa, a ponto de
haver um momento em que o Xokleng-Lãklanô teve apenas, ainda, somente cerca de
400 indivíduos.
Povo aguerrido, no
entanto, guardou sua língua, seus costumes, sua cultura – creio que faz uns 30
anos que a população subira, de novo, para mais de 4.000 indivíduos. Na
verdade, não sei quantas pessoas Xokleng-Lãklanô existem hoje, mas não devem
ser poucas. É aí que entra a minha emoção de hoje e o Caio. Faz tempo que os
irmãos de etnia de Caio estão frequentando as universidades e fazendo muitas
coisas maravilhosas na vida, como o pai de Caio, Nanblá Gakran, o primeiro
doutor do povo, formado pela Universidade de Brasília, linguista que participa
de grandes congressos internacionais em lugares como a Suécia, por exemplo, e a
irmã de Caio, já no terceiro ano de Nutrição da Universidade Federal de Santa
Catarina – penso por ter notícias da família de Caio faz tempo é que me levou a
toda esta emoção. Sabem o que aconteceu hoje? Saiu a lista de aprovados da
UFSC, e o Caio passou... em Medicina! Vai ser o primeiro médico Xokleng-Lãklanô
dos tempos modernos (claro que lá no passado houve outros médicos na sua etnia,
que tinham saberes antigos).
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre
os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
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