sábado, 7 de novembro de 2015

Devaneios de uma roqueira 14


* Por Fernando Yanmar Narciso*


CAPÍTULO 6 (3/3)


Parece que eu sou a próxima da fila pra lavar o beloso. Desde que o salão foi aberto Costello mantém esses pôsteres esquisitos da L’Oreal na parede, com modelos de cabelos arrepiados, espetados, maquiagem pesada... Em 1983 esses pôsteres já ‘tavam’ fora de moda, I guess.

Quem me conhece bem na cidade já deixa um violãozinho à minha espera atrás da porta, com as cordas invertidas. Até em roda de repentista há quem me intime a dar uma palhinha. Enquanto esperava minha vez, fui atrás do velho Tonante, cravejado de adesivos de florzinhas, pendurado na porta do lavabo... Esse ‘pau véio’ deve ter tomado um bocado de chuva, o braço dele ficou tão envergado que parece até um berimbau.

Quando tenho as seis cordas nas mãos, geralmente me vêm em mente as mesmas quatro músicas, quase como num instinto natural. Em primeiro lugar, dá vontade de tocar Breed, do Nirvana. Ah, Kurt Cobain...

Daí eu me lembro de That Thing You Have, dos Damn Laser Vampires, a melhor música pra exercitar a velocidade na palheta. ‘Can't you see my heart's in rags/ I wanna have that thing you have/ Between your legs’. (Risos) Letra demente!

Depois, me dá ponto de tocar o solo de Looking At You, do MC5. Wayne Kramer e Sonic Smith, a maior dupla de guitas do punk. Por último, believe that or not, vem Dê Um Rolê, de Gal Costa, a música favorita de Barbie, ainda que eu ache que minha prima canta aquela música melhor que a própria Gal...

Começo a dedilhar o solo de Looking bem rápido e quase em silêncio, vai que alguém no salão ‘num’ era muito chegado ao meu estilo musical... Desde aquela caminhadinha na neblina de manhã cedo não conseguia tirar da cabeça aquelas frases que escrevi no celular.

‘Falo com as plantas e elas gritam comigo/ Canto para as rosas e elas apodrecem’, mas tem alguma coisa nelas que não se encaixava. I dunno... Sentia que podia sair algum suco dessa laranja, mas no caminho de casa até a cidade acabei indo pra uma direção extrema oposta àquela. Well, compor tem dessas coisas!
- Ei, meninas. ‘Tô’ trabalhando nesse poema no celular desde manhãzinha, de repente dava um sonzinho até mais ou menos... Sente só!

‘Viver ao seu lado/É uma doença/ Viver sem você/ São mil mortes/Ao seu lado, não sou nada/ Sem você, sou ainda menos/ Meu ódio é tão grande/ Que é quase amor/ Sua existência/ Me envenena/ Sua ausência/ Me consome/ Amaldiçoo o dia/ Que entrou em minha vida/ E corto meu pescoço/ Se você sair dela/ Sou louca por você/ Sou louca sem você/ Não sei te esquecer/ É de entorpecer/ Poderia arrancar/ Seu coração e comer/ E você?’

Quem me ouviu recitar a letra, e todo mundo no salão ouviu, até o Fidel, ficou de queixo caído, babando de incredulidade. É, parece que eu ‘tô’ no caminho certo! (Risos)
- Pulguenta, pulguenta! Quê que é isso, menina, um bilhete suicida?- Perguntou Costello.
- Falta de homem é um ‘pobrema’ sério, hem?- Fez piada Déra, ao dispensar aquela freguesa.
- Será que ‘ocê’ vai perdoar sua mãe algum dia, Lexi?- Veio comentar Monique.
- Uai, nem tinha me tocado que tinha escrito sobre ela! Como ‘ocê’...
- ‘Nóis’ te conhece há muito tempo, Lexi, escreve sobre o desprezo dela desde o 3º ano! Anda, amiga. Larga o violão e esse poema satânico e vem dar uma regada nas madeixas!
- Poxa, nem sabia que eu era tão previsível assim...

At last, chegou minha vez. Como também já é costume por aqui, todos vieram implicar com meu desleixo. Nica brincou que meu ‘beloso’ é tão embaraçado que quase ‘num’ dá pra passar os dedos entre as mechas pra lavar. O pulso dela quase foi algemado por uma delas. E tomou um baita susto com a libélula tatuada nas minhas costas. Chamou Costello e as outras duas pra ‘admirar’ o monstrengo. Brinquei que começaria a cobrar pra tirarem fotos ao lado dela. Atração de circo de primeira! (Risos)

Logo foi a vez do Costello curtir com minha cara. Disse que nem tesourão de jardim conseguiria podar minha juba crespa. Disse pra ele que era só tentar com mais força, pois só sairia da cadeira depois que ele tirasse, no mínimo, um palmo e meio.
- Mas nada de mexer na franja, OK? Prezo por essa franja mais que pela minha saúde!

E o coitado do Fidel lá na varandinha, uivando desesperadamente para que alguém na rua o seqüestre e lave aquela tintura ridícula do pêlo dele... Os olhos dele são de estilhaçar o coração de qualquer um a pedradas! Enquanto Costello me capinava a cabeça, Déra tentava dar um jeito nas minhas unhas.
- Credo, Lexi! Que unhas horríveis são essas? Cada uma crescendo num tamanho, numa direção diferente! Quando vai aprender que dente ‘num’ substitui o ‘unhex’?
- Guitarrista, né, Déra! Já nasci com palhetas saindo pelos dedos!
- E essas cutículas grossas, horrorosas? Se eu conseguir tirar, dá até pra fritar e servir como torresmo!
- Então vai ‘panhar’ a lima, a torquês, a chave de grifo, o que na caixinha de ferramentas, pois só vou embora depois que ‘ocêis’ fizerem uma canja com titica de galinha!

Tá bom. Sei que agora peguei meio pesado comigo mesma. Titica em canja... E o engraçado é que mesmo sendo tão relaxada comigo, provavelmente recebo mais cantadas por dia que as três juntas! Costello e as três aproveitam pra pegar no pé de meus badulaques, a bandana desbotada e rasgada, o pingente enferrujado, a coleirinha de buldogue...

Mas às vezes faz um bem deixar de lado os métodos de ‘loba solitária’ e fingir que consigo ser uma mulher normal e conversar, mesmo que seja só pra receber ‘pitos’ de minhas amigas de escola. Viver a dez quilômetros da cidade pode fazer um mal à sanidade!
See ya later, guys!

Alexia, sua não tão confiável narradora.


* Escritor e designer gráfico. Contatos:
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