quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A mulher sem marido


* Por Mara Narciso


Há 70 anos uma mulher cujo marido tivesse outra família e pedisse ajuda ao irmão, seria re-encaminhada para casa, onde deveria permanecer casada e calada, cuidando dos meninos. Adiante, havia o termo “viúva-alegre” para desqualificar a mulher que perdesse o marido e mostrasse interesse em contrair novo matrimônio.

No norte de Minas, no final da década de 1960, era possível testemunhar uma cena bizarra: uma mulher “desquitada” (não havia divórcio no Brasil, promulgado em dezembro de 1977) que tivesse a audácia de entrar numa festa de um clube classe média, não parava o trânsito, parava a orquestra. Os casais dançantes voltavam para as mesas e a festa só continuava quando o organizador, ao microfone, expulsasse a mulher.

Existia a “solteirona”, uma mulher que não conseguira marido. Em 1930, ter mais de 20 anos e não ter se casado significava que a moça aceitaria qualquer candidato para sair do “caritó”. Outra figura que existia era o da “mãe solteira”. Antes causava assassinatos, mas em 1970 ainda era vergonhoso ter uma filha grávida sem antes ter se casado. Por mais ridícula que fosse a circunstância, o casamento era providenciado, mesmo para durar pouco. Caso a mulher gestante fosse submetida ao aborto e o procedimento se complicasse, poderia ser abandonada pela família, até a morte. O preconceito suplantava a racionalidade.

Hoje, dependendo da crença, ainda se encontram pessoas que são levadas a se casar adolescentes, apenas para evitar o sexo fora do casamento. Por incrível que pareça ainda se pode pensar que uma mulher sem marido seja viúva, como única opção.

Antes do divórcio constitucional, artistas que se casavam mais de uma vez eram mal-vistos. Em 1968 Roberto Carlos se casou na Bolívia com Nice (Cleonice Rossi), já falecida, mulher um ano mais velha do que ele, separada e com uma filha, Ana Paula, que acabou por batizar milhares de meninas pelo país afora. Alguém me falou da sua decepção com o Rei, que, podendo se casar com quem quisesse, tinha escolhido uma mulher desquitada. A encenação exigida pela sociedade obrigava o ajeito do casamento fora do país. Gente como Vinícius de Morais jogava às favas essas convenções, e fazia como se faz hoje, ia morar junto, simplesmente, isso há mais de cinquenta anos. A maestrina Chiquinha Gonzaga fez isso no século XIX, mas precisava fingir que não fazia.

Ainda está de pé a máxima “o que Deus uniu o homem não separa”. Muitos conseguem se arrastar uma vida inteira lado a lado se odiando, na saúde e na doença, até que a morte os separe (ou, como disse Chico Buarque, “até que a morte os una”). Mas existe a liberdade de se fazer diferente disso, e antes que um aperte o pescoço do outro, encerram o teatro e cada um vai para o seu lado.

Em 2015 o status de “casada” é uma moeda que tem valor e dá cacife. Mesmo que expressões como “desapartada do marido” estejam fora de moda, e desde a década de 1970 sejam comuns mulheres trabalharem fora e se sentirem donas do seu dinheiro e do seu tempo, algumas não são totalmente donas dos seus narizes. Muitas pagam as contas e se vêem na obrigação de bater continência para seus maridos, ou até pais e irmãos.

Já há algum tempo é habitual mulheres decidirem ser mães sem se casar, ou então se separar e partir para um outro amor, porém sem necessidade de casamento. Em geral, pessoas maduras namoram, estão juntas, viajam, sendo vistas como casais, e, no entanto, continuam morando em casas separadas, sem intenção de formalizar a relação. Do ponto de vista financeiro, há quem defenda o registro da relação estável, para evitar prejuízos. A sociedade aceita como natural o arranjo familiar informal. Já corporações como a Polícia Militar mostram não querer o concubinato e favorecem o casamento.

Mulheres criadas na lei de se casar virgens podem não se adequar aos novos costumes, e, divorciadas ou viúvas sentem-se bloqueadas pela religião ou outros conceitos castradores e se proíbem outro relacionamento. Da mesma forma que não se reeduca quem nunca teve educação, também não se reconstrói uma vida para quem nunca teve uma. A existência plena e o amor verdadeiro poderão surgir só numa segunda vez, e neste caso seria um crime não deixá-los acontecer.

A contradição de se criticar e ao mesmo tempo se cobrar uma companhia masculina faz parte dos fragmentos sociais colocados. E por fim, fica o meu protesto contra o Projeto de Lei do Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, que tenta dificultar o aborto legal em caso de estupro. A condenação apriorística da mulher é retrocesso.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Pior que era isso mesmo: mulher era coisa e tinha dono. E há lugares por esse Brasil de meu Deus que ainda é assim... Abraços, Mara.

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    1. Jogaram-me muitas pedras e afirmam que defendo o aborto no texto.

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