A mulher sem marido
* Por
Mara Narciso
Há 70 anos uma mulher
cujo marido tivesse outra família e pedisse ajuda ao irmão, seria
re-encaminhada para casa, onde deveria permanecer casada e calada, cuidando dos
meninos. Adiante, havia o termo “viúva-alegre” para desqualificar a mulher que
perdesse o marido e mostrasse interesse em contrair novo matrimônio.
No norte de Minas, no
final da década de 1960, era possível testemunhar uma cena bizarra: uma mulher
“desquitada” (não havia divórcio no Brasil, promulgado em dezembro de 1977) que
tivesse a audácia de entrar numa festa de um clube classe média, não parava o
trânsito, parava a orquestra. Os casais dançantes voltavam para as mesas e a
festa só continuava quando o organizador, ao microfone, expulsasse a mulher.
Existia a
“solteirona”, uma mulher que não conseguira marido. Em 1930, ter mais de 20
anos e não ter se casado significava que a moça aceitaria qualquer candidato
para sair do “caritó”. Outra figura que existia era o da “mãe solteira”. Antes
causava assassinatos, mas em 1970 ainda era vergonhoso ter uma filha grávida
sem antes ter se casado. Por mais ridícula que fosse a circunstância, o
casamento era providenciado, mesmo para durar pouco. Caso a mulher gestante
fosse submetida ao aborto e o procedimento se complicasse, poderia ser
abandonada pela família, até a morte. O preconceito suplantava a racionalidade.
Hoje, dependendo da
crença, ainda se encontram pessoas que são levadas a se casar adolescentes,
apenas para evitar o sexo fora do casamento. Por incrível que pareça ainda se
pode pensar que uma mulher sem marido seja viúva, como única opção.
Antes do divórcio
constitucional, artistas que se casavam mais de uma vez eram mal-vistos. Em
1968 Roberto Carlos se casou na Bolívia com Nice (Cleonice Rossi), já falecida,
mulher um ano mais velha do que ele, separada e com uma filha, Ana Paula, que
acabou por batizar milhares de meninas pelo país afora. Alguém me falou da sua
decepção com o Rei, que, podendo se casar com quem quisesse, tinha escolhido
uma mulher desquitada. A encenação exigida pela sociedade obrigava o ajeito do
casamento fora do país. Gente como Vinícius de Morais jogava às favas essas
convenções, e fazia como se faz hoje, ia morar junto, simplesmente, isso há
mais de cinquenta anos. A maestrina Chiquinha Gonzaga fez isso no século XIX,
mas precisava fingir que não fazia.
Ainda está de pé a
máxima “o que Deus uniu o homem não separa”. Muitos conseguem se arrastar uma
vida inteira lado a lado se odiando, na saúde e na doença, até que a morte os
separe (ou, como disse Chico Buarque, “até que a morte os una”). Mas existe a
liberdade de se fazer diferente disso, e antes que um aperte o pescoço do
outro, encerram o teatro e cada um vai para o seu lado.
Em 2015 o status de
“casada” é uma moeda que tem valor e dá cacife. Mesmo que expressões como
“desapartada do marido” estejam fora de moda, e desde a década de 1970 sejam
comuns mulheres trabalharem fora e se sentirem donas do seu dinheiro e do seu
tempo, algumas não são totalmente donas dos seus narizes. Muitas pagam as
contas e se vêem na obrigação de bater continência para seus maridos, ou até
pais e irmãos.
Já há algum tempo é
habitual mulheres decidirem ser mães sem se casar, ou então se separar e partir
para um outro amor, porém sem necessidade de casamento. Em geral, pessoas
maduras namoram, estão juntas, viajam, sendo vistas como casais, e, no entanto,
continuam morando em casas separadas, sem intenção de formalizar a relação. Do
ponto de vista financeiro, há quem defenda o registro da relação estável, para
evitar prejuízos. A sociedade aceita como natural o arranjo familiar informal.
Já corporações como a Polícia Militar mostram não querer o concubinato e
favorecem o casamento.
Mulheres criadas na
lei de se casar virgens podem não se adequar aos novos costumes, e, divorciadas
ou viúvas sentem-se bloqueadas pela religião ou outros conceitos castradores e
se proíbem outro relacionamento. Da mesma forma que não se reeduca quem nunca
teve educação, também não se reconstrói uma vida para quem nunca teve uma. A
existência plena e o amor verdadeiro poderão surgir só numa segunda vez, e
neste caso seria um crime não deixá-los acontecer.
A contradição de se
criticar e ao mesmo tempo se cobrar uma companhia masculina faz parte dos
fragmentos sociais colocados. E por fim, fica o meu protesto contra o Projeto
de Lei do Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, que tenta
dificultar o aborto legal em caso de estupro. A condenação apriorística da
mulher é retrocesso.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Pior que era isso mesmo: mulher era coisa e tinha dono. E há lugares por esse Brasil de meu Deus que ainda é assim... Abraços, Mara.
ResponderExcluirJogaram-me muitas pedras e afirmam que defendo o aborto no texto.
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