Quando dois bicudos se beijaram
O povo, entre tantos provérbios que criou – repetidos tempo
e mundo afora, sem que ninguém saiba quem foi seu verdadeiro criador – costuma dizer
que “dois bicudos não se beijam”. O significado dessa expressão é que
temperamentos semelhantes, mesmo encontrando pontos comuns, não se entendem.
Como toda generalização, porém, esta também não se sustenta. Dois bicudos não
se beijam mesmo? Depende! Podem até não se beijar, mas se houver interesse
comum, em que um complemente o outro, embora não se “beijem” de fato, se
toleram e sua associação pode até ser produtiva e perdurar, e por bastante
tempo.
A esse provérbio prefiro contrapor uma expressão latina,
muito comum na Roma antiga, que dizia: “Simile simila”. Ou seja, que “semelhante
procura semelhante”. Claro que aqui cabe, também, a observação que fiz a
propósito de generalizações. Ou seja, essa busca depende de uma série de
fatores e de circunstâncias. Recorro a essas duas citações pensando na
associação entre o que viria a se tornar o grande magnata da imprensa
norte-americana, William Randolph Hearst, e um dos mais polêmicos e odiados jornalistas
do final do século XIX e início do XX, Ambrose Bierse, cujo nome (pelo menos em
sua passagem por São Francisco, na Califórnia), vinha, invariavelmente
acompanhado do adjetivo “the bitter” (o amargo).
Aqui recorro, para informar como se deu o encontro desses
dois homens tão “parecidos”, a despeito da diferença de idade, a Heloisa
Seixas, na reveladora introdução que a jornalista fez ao livro “Visões da noite”
(Editora Record, 1999), do qual é a tradutora: “Um dia, em 1887, como ele (o
jornalista) contaria depois, um jovem bateu à sua porta: era William Randolph
Hearst, na época com 24 anos, que acabara de receber das mãos do pai o jornal
Examiner e vinha convidar Bierce para trabalhar com ele. Era o início de uma
parceria que duraria vinte anos e marcaria de forma definitiva a história do
jornalismo americano...” E marcaria de fato. Mas... pelo seu pior aspecto.
Como seria de se esperar, essa relação, embora tão
duradoura, foi sumamente conflituosa. Conforme biógrafos de Bierce, ambos não
se toleravam e, pior, odiavam-se ferozmente. A diferença de idade entre os dois
era considerável, na ocasião do convite. Enquanto o futuro magnata tinha 24
anos, o jornalista tinha 45. Ou seja, tinha idade para ser pai do que viria a
ser, por duas décadas, seu patrão. Heloísa Seixas revela a razão daquela
parceria ter durado tanto tempo: “Durante aquelas duas décadas, Bierce e Hearst
chegaram a se odiar, mas de alguma forma continuaram trabalhando juntos, pois a
virulência do primeiro servia aos interesses do segundo. Bierce não poupava
ninguém: políticos, prostitutas, feministas, escritores que considerava
medíocres, fazendeiros, sindicalistas, jornalistas opositores e amigos com quem
tivesse brigado. Quando deixou São Francisco e foi trabalhar em Washington,
houve quem dissesse que se mudara para fugir dos inimigos”. Pudera!
Pois é, a forma como Hearst encarava o jornalismo só poderia
funcionar (e funcionou) com a participação ativa de um jornalista como “The
bitter Bierce”. As notícias de seus jornais eram compradas a qualquer preço. E
estas tinham, necessariamente, de ter crueldades, patifarias, escândalos e/ou
crimes de extrema violência. Era o que ficou conhecido nos meios jornalísticos
de “imprensa marrom”. Quando, nas notícias, não havia crueldades ou crimes
violentos para contar... cabia aos jornalistas e fotógrafos “darem um jeito” no
assunto. Não estou inventando nada disso. Qualquer biografia de Hearst traz
tudo isso e de maneira detalhada. Ele instituiu, ou pelo menos “aperfeiçoou”, o
que se tornou a marca da “imprensa marrom”: ou seja, a mentira e a crueldade
arranjadas e servidas como verdade.
Foi esse tipo de procedimento que tornou Hearst milionário.
E mais do que isso, transformou-o em pessoa importante e influente no âmbito
jornalístico. Em 1935, por exemplo, o magnata era um dos homens mais ricos do
mundo. Sua fortuna, na ocasião, era avaliada em US$ 200 milhões, o que, então,
era uma exorbitância de dinheiro.
A enciclopédia eletrônica Wikipédia traz alguns números que
dão conta do tremendo poder que esse sujeito detinha no seu auge: “Na década
dos anos 40, William Hearst era proprietário de 25 jornais diários, 24
semanários, 12 estações de radio, 2 serviços de noticias mundiais, um serviço
de notícias para filme, a empresa de filme Cosmopolitan e muito mais. Em 1948
comprou uma das primeiras estações de televisão dos EUA, a WBAL-TV em
Baltimore. Os jornais de Hearst vendiam 13 milhões de exemplares diários com
cerca de 40 milhões de leitores! Quase um terço da população adulta dos EUA lia
diariamente os jornais de Hearst! E além disso muitos milhões de pessoas em
todo o mundo recebiam a informação da imprensa de Hearst através dos serviços
de notícias, filmes e uma série de revistas que eram traduzidas e editadas em
grandes quantidades em todo o mundo”.
Não estranho, pois, que Randolph Hearst tenha sido escolhido
como modelo da obra-prima de Orson Welles, no filme “Cidadão Kane”, ganhador de
um Oscar de melhor roteiro. Estranharia se outra figura inspirasse esse icônico
personagem. Este foi, pois, o caso típico em que “dois bicudos se beijaram”. A
diferença foi que o patrão se tornou multimilionário. Já o jornalista... apenas
aumentou sua fama de exótico, desbocado e colecionador de inimigos. Bierce
ganhou muito dinheiro, sim, mas não propriamente com Hearst. Heloisa Seixas
informa quando, e como. Foi no semanário San Francisco News Letter and
Commercial Advertiser, onde assinava uma coluna e era editor.
“Independente e dizendo o que queria, mantinha com o dono do
jornal, Fred Marriott, uma relação de respeito mútuo e este último jamais lhe
dava ordens, apenas sugestões. A parceria deu certo, o jornal vendeu mais e
Bierce começou a ganhar dinheiro — a ponto de reunir as condições para se casar.
Em 1871, casou-se com Molly Day, uma jovem da sociedade de São Francisco, cujo
pai, rico, financiou a ida do jovem casal para Londres, onde passariam uma
longa temporada. A intenção de Bierce era ser escritor, mas as dificuldades
eram muitas e, em 1873, ele acabou voltando para São Francisco, trazendo na
bagagem muita experiência e uma forte reputação, mas sem emprego à vista”.
Todavia se abomino sua atuação como jornalista (e abomino
mesmo), por ter visão diametralmente oposta á dele, do jornalismo honesto e
construtivo, admiro e aplaudo sua carreira literária (mesmo não sendo fanático
por histórias de terror). Nela, Bierce não ficou nada a dever a Edgar Alan Poe,
o “pai” do gênero que tão bem explorou, chegando, em alguns contos, a superar o
mestre. Este é um aspecto que me fascina e que, por isso, merece comentários
exclusivos e detalhados, que me proponho a fazer oportunamente.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Possivelmente um não seria o que chegou a ser sem a parceria com seu oposto.
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