Gustav
* Por Edmundo
Pacheco
O sino da igreja badalou
preguiçosamente meia-noite, no momento em que os primeiros raios de sol
começaram a iluminar o horizonte. O calor era escaldante. Gustav levantou-se,
sem escovar dentes, lavar rosto, nada. Nem um gole de café. Simplesmente vestiu
as grossas roupas e saiu para a manhã enegrecida. Ao abrir a pesada porta,
puxou as grossas golas de lã de carneiro por sobre as orelhas. Seu corpo suava
a bicas. Seus pés estavam congelados.
Ao longe, um som estridente e inaudível
cobrou-lhe a hora. Era a fábrica. A terrível fábrica. Era a vida o chamando
para a inércia do nada a fazer pela vida, dia após dia, noite após noite.
Cobrando a responsabilidade irresponsável de quem não é. Olhou longamente à
direita e à esquerda, antes de descer o primeiro degrau da escadinha de madeira
que o separava da rua barrenta.
As casinhas, todas simetricamente
iguais, com suas escadinhas de madeira e corrimão improvisado de barrinhas de
ferro 1/8 e uma luminária amarelada clareando o escuro, se perdiam de vista
para onde quer que se olhasse. Em cada alpendre, um Gustav se preparava para
enfrentar a sina de quem não tem, num lugar onde quem não tem, não tem. Era uma
imagem de espelho, infinitamente refletida à direita e à esquerda.
Gustav não gostava de espelhos. Mas era
um escravo, como todos. E não tinha direitos, como todos. Não tinha que gostar
ou deixar de gostar de nada... Esticou a perna e deu seu primeiro passo em
direção ao primeiro dos 3 degraus e todos os Gustavs fizeram o mesmo movimento,
rítmico, cadenciado. O bafo infernalmente quente do vulcão que lhes servia de
proteção e ameaça, varreu a rua, secando imediatamente a lama. Finalmente seus
pés se aqueceram.
Se tivesse, Gustav gostaria de estar
numa praia, sentado, olhando o sol nascer. Se tivesse, Gustav gostaria de
viver. A longa procissão de Gustavs terminou de descer para a rua e seguiu
infinitamente numa fila muda, de cordeiros ao direção ao abatedouro. Gustav era
o primeiro e o último. O dia, também.
A fábrica apitou longamente de novo,
cobrando um possível atraso, mas ninguém acelerou o passo. Escravos não têm
pressa. Não vão a lugar algum. Na enorme entrada entalhada em madeira de lei,
podia se ver o entalhe do nome precioso de quem tem. E quem tem, lá de cima
espreitava impacientemente a longa fila sendo engolida vagarosamente.
Cartão ponto. Plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-lec.
Plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-lec. Plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-lec.
Plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-lec.
Mastigando vagarosamente... Implacavelmente... Eternamente...
Gustav, deu uma última olhada por sobre
os ombros e viu um raio dourado de sol surgindo por cima da boca enegrecida do
vulcão. Do outro lado deveria estar sua praia. E em algum lugar lá, bem distante,
sua vida ficara sentada, observando o sol nascente.
Plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-lec. Plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-lec. Plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-plec-lec.
Gustav foi cruelmente engolido sem emitir um ai...
*Jornalista
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