Depende de suas mãos... e do que você
vai fazer com elas.
* Por Víctor Caglioni
Hoje, 30 de Julho, parecia que tudo ia tomar seu rumo, tinha
programado, ir ao correio e passar a tarde escrevendo um trabalho para a
universidade. Mas mudei de planos em razão de algo que realmente me comoveu,
muito mais que fartas teorias semiológicas, sem tirar dessas suas importâncias
ao conhecimento acadêmico.
Na quinta feira passada, voltava para casa pela linha 41, de
Buenos Aires, na primeira parada da Avenida Las Heras (umas das importantes
avenidas que ligam os bairros mais ricos ao centro), entrou no coletivo um
jovem, vestido de terno e gravata, que perguntou ao motorista se podia vender
sua mercadoria, pedido que foi autorizado. Em alto e bom tom, iniciou seu
discurso.
Aquele jovem, visivelmente mais novo que eu, vendia canetas
de uma famosa marca italiana, com corte de cabelo ao estilo David Villa Sanchéz
(Barcelona) fazendo jus ao que aqui é conhecido como pibes,(algo como garotos
de bairros populares, numa tradução simples) falava com um grau de desenvoltura
invejável, parei de ler minhas anotações e passei a observar como ele iria se
comportar num ônibus quase lotado.
Depois de uns minutos de fala, sobre as potencialidades da
tal caneta, me dei conta que fazia alguns meses, havia comprado um estojo de
canetas do mesmo jovem num trem, em direção a cidade de Tigre. Era o mesmo
jovem, só que vestido de modo mais formal e as canetas que eu havia comprado
também eram mais simples.
Para minha surpresa de observador, me deparo com o fato de
que o jovem, depois de atender a todos os pedidos, se eu não perdi a conta
vendeu dez canetas a um preço de $35 pesos cada uma. (que conste que a caneta
não se encontra por menos de $150 pesos, mais ou menos R$70 reais, segundo site
do mercado livre local).
O jovem desceu do ônibus em frente à estação de trem de Once
(com destino aos subúrbios) após sua “doce” venda (ainda que não se saiba
quanto dessa quantia fica em suas mãos). Pensei, ai vai alguém que tem um
extraordinário talento para vender que o “mercado formal” tão seletivo e as
vezes preconceituoso não soube aproveitar. Fiquei pensando nas possibilidades
que o levaram a condição de vendedor ambulante, tendo uma excelente persuasão.
Seria o fato de ter traços perfeitamente latino-indígenas, ou por não ter tido
acesso à educação que lhe fornecesse ingressar no chamado mercado formal, ou
oportunidades formais. Fiquei na dúvida, talvez fosse todas essas coisas ou
algumas mais, que jamais saberia.
Como mencionei anteriormente, mudei o rumo das coisas
programadas para tarde, e por quê? Em função da necessidade de ir ao correio
mais próximo da minha casa, tomei outra linha de ônibus, 168, e para minha
surpresa, após poucas paradas entra no ônibus aquele mesmo jovem. O motorista,
porém negou a ele que vendesse suas canetas, mesmo assim ele pagou a passagem e
em pé se posicionou ao lado da janela, num corredor sem bancos, onde eu também
estava. Pensei, não é possível, é muita coincidência. Me atreveria a perguntar
sobre sua vida? Seria muita audácia? Durante os poucos segundos em que pensava
nisso, ele iniciou uma conversa com um senhor que lhe dava certa atenção,
enquanto olhava para a rua.
Ele perguntou ao senhor se o mesmo queria comprar uma caneta
e iniciou seu discurso. O senhor olhou desconfiado e perguntou se podia
confiar, naquela falsificação, o rapaz sem hesitar, lê disse: “vos podes confiar
en mi, en la biroma, depende de sus manos, y lo que va hacer con ella!”(Você
pode confiar em mim, na caneta, depende de suas mãos e do vai fazer com ela.).
O senhor sorriu e comprou a caneta, o rapaz desceu na parada
seguinte.
Eu estava muito impressionado e fiquei a tarde toda pensando
em tudo isso e cheguei à conclusão de que, aquele rapaz era a prova viva que as
leis de mercado (vividas ao extremo na década de 90 na Argentina) por si só,
sem o Estado e a mobilização social(visivelmente presente , ainda que de forma
um tanto complexa, na Argentina atual), não é capaz de cumprir, nem com o que
supostamente proclama, de privilegiar os “mais aptos” e todo aquele discurso do
darwinismo social. Em caso de alguém discordar, fica a pergunta, por que aquele
habilidoso vendedor, ainda precisa estar recorrendo às ruas de uma imponente
capital como Buenos Aires, para trabalhar? Ele não está apto para exercer sua
profissão?
Creio que, por tudo isso, esse jovem que, talvez siga sua
vida no trabalho informal, merecia ao menos ter parte de sua vivencia
compartida com mais pessoas, para reflexão ou como homenagem, por que me fez
lembrar de meu pai, trabalhador da construção civil, que estudou até a quarta
série do antigo 1ͦ grau e que ajuda, há mais de 20 anos, muitos engenheiros e
arquitetos a resolverem problemas de sua área, e salvo importantes exceções,
nem sempre tem o devido reconhecimento de suas habilidades como tal.
Então, mesmo com vidas paralelas, me pergunto: o que seria
de meu pai e daquele jovem, se tivessem tido a oportunidade de desenvolver suas
habilidades ao máximo, pelas vias do Estado, através do conhecimento
"preparado" por nós intelectuais e técnicos? Ainda que hoje trabalhem
dignamente, é provável que sofressem menos com as incertezas e a invisibilidade
que suas profissões têm perante a sociedade. Na minha condição privilegiada, o
mínimo que posso fazer é projetar a existência desses para mundo, como forma de
representar e homenagear milhares de outros de mesma trajetória, a fim de
incitar nossa reflexão aos milhares de talentos que temos
"escondidos" ou pouco valorizados (vide nossos professores públicos),
por que estes reconhecidos, certamente fariam nossas instituições, empresas e
sociedades muito melhores.
* Sociólogo
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