Somos filhos da Petra ou da Preta?
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Desocupado (a) leitor
(a), peço que examines os fatos com isenção, sem preconceitos e depois me diz
com toda a sinceridade quem é a civilizada: a Petra ou a Preta? Qual das duas
podia ser tua mãe? Quem é que gostarias que te educasse e com quais valores e
princípios éticos?
A Petra vive em
Budapeste às margens do rio Danúbio, centro financeiro, cultural e histórico da
Europa. Estudou na Universidade de Pécs, uma das mais antigas do mundo, fundada
em 1367 pelo rei Luís I da Hungria, um país com vários ganhadores do Prêmio
Nobel. Frequenta teatros, museus, cinemas, bibliotecas, centros culturais e restaurantes
sofisticados. Fala inglês, russo e alemão, além do húngaro que, segundo Chico
Buarque, é "a única língua do mundo que o diabo respeita". Repórter
da rede N1TV, filma, fotografa, usa computador, carro, metrô, avião e perfume
francês.
A Preta nasceu no
coração da floresta nos arredores de Óbidos, no Pará, na garganta do rio
Amazonas. Não sabe ler, nunca frequentou escola. A "biblioteca" mais
próxima, distante vários dias de remo, conta apenas vinte livros numa
prateleira dentro de uma "choupana de barro coberta de folhas de palmeiras
nas margens do Tocantins, que pertence ao escrivão do lugar, um jovem mameluco
chamado Soares" (p.58). Seus irmãos foram assassinados por um tal
"major Gama, comandante militar de Óbidos" (p.103) Embora não fale
uma palavra de francês, ela se exilou em Paris.
A budapestina
O que foi que Petra e
Preta fizeram para atrair a atenção? A jornalista Petra Laszlo se celebrizou na
terça-feira quando chutou uma menina e deu rasteira num refugiado com uma
criança no colo, derrubando-os, em cena que escandalizou o planeta. Fez isso
diante da dor do mundo que contempla impotente o sufoco de milhões de
refugiados, as mortes de um menino de três anos numa praia turca e de 71
migrantes, entre eles crianças, asfixiados num caminhão em estrada da Áustria.
Essa tragédia
humanitária de proporções gigantescas que afeta o Oriente Médio, o norte da
África e o mundo inteiro, não comoveu o coração pétreo da jornalista, que
abandonou seu papel de testemunha para colaborar com a polícia, criando um fato
novo. Derrubou um homem que tentava desesperadamente furar a barreira policial
na fronteira da Hungria com a Sérvia com o filho no colo. Chutou-os para
filmá-los nocauteados, mordendo o pó. A agressão, registrada por um colega, foi
amplamente divulgada pela mídia e pelas redes sociais.
Ninguém sabe detalhes
de sua vida, só que ela trabalhava na TV da Rede do Jobbik, o partido de
extrema-direita atualmente no poder, que soltou a polícia, como cães raivosos,
contra os refugiados. Mas diante do escândalo, nem seus colegas cavernosos lhe
deram apoio. Embora Petra seja o retrato da direita europeia e tenha feito com
os pés o que se faz diariamente com o discurso, com o olhar, com posturas, foi
demitida e pode cumprir até sete anos de prisão, o que ainda é pouco.
Nada mais foi dito
sobre Petra na acanhada cobertura jornalística. Neste sábado (12) ela apareceu
publicamente se apresentando como "uma mãe solteira desempregada com
filhos pequenos", lamentando haver tomado "uma decisão errada"
num momento de susto. Será?
Ficamos sem saber como
Petra Laszlo perdeu sua humanidade. Para que servem livros, filmes, música,
exposições, cursos, viagens, domínio de línguas estrangeiras, se o resultado é
esse lixo moral? Como é que alguém sai de uma universidade com o coração ainda
mais endurecido, incapaz de um gesto de compaixão, de solidariedade, sem a
compreensão dos fatos históricos e do papel da intelligentsia? Que bosta de
universidade é essa? Onde é que esse traste estudou jornalismo, quem foram seus
professores, que disciplinas cursou, qual o espaço curricular para discutir as
questões éticas?
Até o bairro onde vive
essa budapestina mal amante e mal amada pode ser informação pertinente. Ela
vive em Buda, na margem direita do Danúbio ou em Peste, na margem esquerda? É
mesmo mãe solteira? Tem namorado, já beijou e amou alguém, já deram uma
cafungada no cangote dela? Quem teria coragem de tê-la como companheira: algum
Bolsonaro de Budapeste? Como trata os filhos? Tem irmãos e sobrinhos? Qual a
relação com seus pais e vizinhos, que tipo de musica aprecia, quais os filmes
que viu, que livros leu, quem foram seus colegas de escola? Ela é o contrário
da Preta.
A amazônida
A Preta viu seus
irmãos da floresta serem assassinados pelo major Gama e não se sabe como acabou
se refugiando na França, junto com sua irmã Chica. Quem conta a história delas
é Henry Walter Bates, um cientista inglês que viveu onze anos na Amazônia (de
1848 a 1859) e colaborou de perto com Charles Darwin. Ele escreveu um livro,
onde registrou a história de Preta e Chica, que não aparecem com esses nomes.
As duas foram
recebidas em Paris por Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, um naturalista francês,
professor da Sorbonne e por seu filho Isidore (1805-1861), zoólogo e médico.
Ficaram hospedadas no Jardim das Plantas. Quem dá notícias do exílio e dos
gestos de solidariedade e humanidade delas é Bates:
"Segundo relato
feito por Geoffroy St.Hilaire elas raramente se separavam, permanecendo
constantemente abraçadas e com as caudas enlaçando o corpo uma da outra. Comiam
juntas, e nessas ocasiões em que a amizade dos animais é posta duramente à
prova, elas nunca brigavam pela posse de alguma fruta ou petisco
preferido" (p.104).
Preta e Chica eram
duas macacas da espécie cuatá (Ateles Paniscus), pretas, grandes e de pelos
ásperos, com uma coloração amarelada nas partes da cara, desprendidas e
generosas, que nos ensinam a repartir o pão. Sua família foi dizimada pelo
major Gama, que matava vários macacos cada semana, cuja carne é apreciada na
região. Elas se salvaram porque fugiram para Paris, Bates relata a cena que
testemunhou com a mãe delas:
"Tratava-se de
uma macaca já velha, que acompanhava seu dono, comerciante, em todas as suas
viagens pelo rio. Desejando dar a mim um exemplo da inteligência e do
sentimento do animal, o homem pôs-se a xingá-la violentamente, usando de todos
os vitupérios em que é fértil a língua portuguesa. A pobre macaca, sentada
humildemente no chão, parecia arrasada por essa manifestação de raiva. Começou
a choramingar e por fim rompeu num choro convulsivo, que lhe sacudia o corpo
todo (....) Finalmente o seu dono mudou de tom:
- É tudo mentira,
minha velha, você é um anjo, uma flor, uma criatura muito boa e carinhosa.
A macaca parou de
chorar imediatamente e logo depois veio sentar-se perto dele" (p.104).
Na Assembleia Geral da
ONU que começa na terça (15) em Nova York, as nações do mundo têm que dizer se
somos filhos da Preta - essa selvagem prenhe de humanidade, ou da Petra - essa
escória fedorenta da civilização. A presidente Dilma Rousseff já se pronunciou
em artigo na Folha de SP - Os refugiados e a esperança - na qual condena a
xenofobia e elogia o comandante da corveta Barroso que salvou mais de 200
refugiados vindos da Líbia, cujo barco estava à deriva. É bom advertir que o
assunto é muito sério para ser usado mesquinhamente como picuinha
oposicionista.
No caminho de volta em
busca da ancestralidade e da humanidade perdida, é da Preta que eu gostaria de
ser filho, da Preta Sapiens, que chora, ri, compartilha, sente, ama e abraça..
P.S. - As citações são
do livro de Henry Walter Bates: Um naturalista no Rio Amazonas. São Paulo/Belo
Horizonte, USP/Itatiaia. 1979, 300 pp.
*
Jornalista e historiador
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