Um caso de amor – Parte I
* Por
Pedro J. Bondaczuk
(Conto)
I
Theobaldo Miranda estava no topo do
mundo. Seu mais recente romance, “Um caso de amor”, era o sucesso editorial da
temporada. O livro era fenômeno de vendas e estava há já três meses na lista
dos dez mais vendidos da revista Veja, subindo, de semana a semana, um novo
degrau na colocação.
As críticas eram todas favoráveis e
Theobaldo já nem estava dando conta de tantos compromissos. Eram organizadas,
por exemplo, noites e mais noites de autógrafo, País afora, em Belém, Salvador,
Recife, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte e tantas outras cidades, que o
veterano escritor até chegava a esquecer. Em São Paulo , esse tipo de
promoção chegava às dezenas, sempre com enorme afluência de público nas
livrarias em que ocorria.
Palestras em escolas, clubes e teatros
Theobaldo fazia em
profusão. Houve dia, até, de fazer três: uma de manhã, outra
à tarde e outra à noite. Isso lhe rendia um bom dinheiro, é verdade, já que as
apresentações não eram gratuitas, mas custavam, em média, R$ 500,00 aos
interessados. Mas que eram cansativas, isso ninguém poderia negar. Apesar do
alto preço que cobrava, porém, o veterano escritor continuava muito
requisitado. Só não fazia mais palestras por absoluta falta de tempo.
Após sucessivos fracassos, Theobaldo,
finalmente, saboreava o doce gosto do sucesso, da notoriedade e da fama com que
tanto sonhara. Já participara de todos os programas imagináveis de entrevista
na TV, em especial no do Jô Soares, tão procurado por escritores.
A nova editora cobrava-lhe,
insistentemente, um novo livro, para aproveitar a maré favorável. Pudera! Com o
volume de vendas de “Um caso de amor”, era o mínimo que poderia fazer.
Theobaldo, por seu turno, respondia que já estava planejando novo romance, mas
estava coisa nenhuma. Não tinha tempo para nada, nem para respirar. Sequer
havia pensado num enredo a desenvolver.
“Quando tudo isso passar, vou para o
Recife, para o apartamento do Geraldo, na Praia de Boa Viagem”, prometia a si
próprio, lembrando-se do amigo recém incorporado ao seu círculo de amizades,
sem que tivesse a mínima noção de quando isso ocorreria ou se viria, mesmo, a
acontecer.
O sucesso do “Um caso de amor”
despertou a atenção do público para os seus livros anteriores, notadamente para
“Clarita”, que havia se constituído num monumental fracasso editorial, num
encalhe para desesperar qualquer livreiro por mais sóbrio e comedido que fosse.
Foi por causa desse vexame, aliás, que a editora que antes publicava seus
contos e romances lhe dera o clássico “bilhete azul”.
Antes de ser rejeitado, porém, ouvira
poucas e boas do proprietário. Agora Alípio (este é o seu nome) lhe fazia
marcação cerrada, propondo novo e vantajoso contrato para pelo menos mais três
livros. A caixa postal do celular de Theobaldo estava repleta de recados do
desesperado editor, arrependido da precipitação em dispensar o veterano
escritor.
“Clarita”, por exemplo, que havia
permanecido encalhado por dois anos consecutivos, esgotou, em menos de um mês,
por completo, a primeira edição. Não se encontrava um único e solitário volume,
em livraria alguma, “nem mesmo para remédio”. Alípio queria, a todo o custo,
reeditá-lo, mas para isso, precisava da autorização de Theobaldo. Este, no
entanto, se fazia de difícil. Não queria conversa com quem o havia ignorado e,
pior, enxotado, como a um cão sarnento, há somente seis meses.
@@@
II
Seis meses antes do meteórico sucesso,
Theobaldo Miranda vivia a pior crise da sua vida. Crise era pouco. Sentia-se,
na verdade, no inferno, num interminavelmente fundo poço de desespero e de
sucessivos fracassos. E estes eram tanto profissionais quanto (e
principalmente) pessoais. “Desgraça pouca é bobagem”, dizia, então, aos seus
botões.
Acabara de se divorciar, por exemplo,
de Teresa, mulher que fora, por anos e anos, seu esteio, guarida, grande
incentivadora e responsável por tudo o que de bom havia conseguido até então.
Fora um processo difícil, tenso e doloroso para ambos, em que os dois saíram
bastante feridos emocionalmente.
Ambos disseram, um ao outro, coisas que
jamais pensariam em dizer a qualquer pessoa, mesmo ao pior dos inimigos. Faltou
pouco, pouquíssimo até para que se engalfinhassem, se agredissem fisicamente ou
para que fizessem algo muito pior. A tragédia pairou perigosamente no ar, mas
milagrosamente não se consumou.
O amor mútuo, ao se transformar,
subitamente em ódio (e nenhum dos dois saberia precisar em que momento isso
ocorreu), multiplicou por mil esse sentimento ruim e danoso. Um passou a ser
absolutamente insuportável ao outro. Só se encontravam, e esporadicamente, no
fórum, em presença do juiz. E mesmo diante da autoridade, travavam azedas
batalhas verbais. Várias vezes precisaram ser retirados da sala, ameaçados,
até, de prisão, por desacato à
autoridade. Mas não chegaram a ser presos.
A sorte era que o casal não tinha
filhos. Talvez, na verdade, esse fato se tratasse de azar, já que a
probabilidade maior era a de que a insustentável crise conjugal havia
desembocado nesse dramático desfecho justamente por isso. Ou seja, por ambos
não haverem gerado descendentes. Theobaldo acusava Teresa de ser estéril e esta
garantia que o defeito estava nele, já que fizera todos os exames possíveis e
imagináveis e os resultados comprovavam sua fertilidade. Quem estava com a
razão? Nunca se soube!
Nessa ocasião, “Clarita” já se
constituía em enorme fracasso. E ele que se empenhara tanto em escrever esse
livro! Nem seus parentes o compraram. Os amigos? Afastaram-se todos. A crítica
havia recebido o romance com hostilidade, com mordazes observações
depreciativas. Houve, até, quem o ridicularizasse publicamente e escrevesse, em
reputada coluna de um dos jornais de maior circulação do País, que não entendia
como um texto tão óbvio e tão medíocre pôde ser editado. Provavelmente esse
sujeito não leu o livro e baseou sua “apreciação” (na verdade, depreciação)
pela leitura das orelhas da capa. Muitos “críticos” tinham e têm esse hábito.
Julgam-se todo-poderosos e não têm escrúpulos em arruinar carreiras.
Os direitos autorais, que mesmo nos
anos de vacas gordas já não eram tão expressivos, mas que davam para mantê-lo
num padrão de vida razoável, começaram a minguar cada vez mais, chegando
próximos do zero. E eram todos dos livros anteriores, muito inferiores, por
sinal, na avaliação de Theobaldo, a “Clarita”. Não entendia o que havia
acontecido com esse romance. O enredo era original, o texto vigoroso e criativo
e, no entanto... Não agradara ninguém.
Com o divórcio, as despesas cresceram
em progressão geométrica. Seu advogado era insaciável e sempre pedia mais e
mais dinheiro, argumentando ora que era para cobrir a despesa “x”, ora para a
“y” e ora para a “z”. “Meu Deus do céu,
como é caro se separar de alguém no Brasil!!”, desabafava o desesperado
escritor ao seu representante legal. Mas sempre arranjava, na base de
empréstimos, os valores pedidos.
@@@
III
Theobaldo conheceu Valquíria em março
de 2004. Apesar de endividado e acossado por credores, precisava, urgente, de
uma secretária, para organizar suas anotações e racionalizar as pesquisas que
se fizessem necessárias para os próximos livros. Não podia pagar lá um grande
salário, mas tinha certeza que muita gente talentosa se disporia a trabalhar
para ele por R$ 1.000,00 mensais que, convenhamos, não é nenhuma fortuna.
Precisava escrever! Tinha que acertar
na mosca e produzir uma obra fundamental, que o tirasse do buraco. Mas
precisava ser um enredo original e bem urdido, que se casasse com o seu estilo
preciso e coloquial. Escrever bem, agora, não era mais mero capricho, mas
questão de premente necessidade.
O gabinete de trabalho de Theobaldo era
uma balbúrdia só. Tinha livros e mais livros empilhados aos montes ao redor da
escrivaninha em que ficava seu computador. Papéis de todos os tamanhos e cores,
muitos amassados, cobriam todo o tampo e se tornava impossível localizar qualquer
anotação nos momentos mais críticos e de maior necessidade.
As pastas com informações
imprescindíveis estavam todas fora dos arquivos. Várias pontas de charuto pelo
chão completavam o cenário desolador. Ah, e não se pode esquecer dos copos, que
Theobaldo usava para beber uísque, e que estavam sem lavar há semanas,
empilhados nas prateleiras da biblioteca. Havia, pelo menos, duas dúzias deles
e várias garrafas de bebida vazias.
De uns tempos para cá, só conseguia
escrever em estado de semi-embriaguez. Sóbrio, não saía nada. Seus arquivos no
computador eram truncados e confusos. Só Theobaldo os compreendia. Careciam de
urgente reorganização. Havia, por exemplo, pelo menos dez começos de história,
mas todos sem continuidade. Qual deles iria, finalmente, desenvolver? Não
sabia.
Theobaldo vinha bebendo além da conta e
nem percebia. E fumava como uma chaminé velha de fábrica. Como alguém poderia
trabalhar num ambiente assim? Não poderia! Ademais, sentia-se solitário.
Evitava freqüentar a casa de parentes e de amigos para não ter que ouvir
críticas. Mas precisava de companhia.
Às vezes, tentava satisfazer o desejo
sexual num conhecido bordel das redondezas, mas nunca consumava a transa. “Será
que fiquei impotente?”, perguntava-se aflito. Mas não dava bandeira. Pagava as
prostitutas apenas para ouvir suas histórias. “Quem sabe uma delas não poderá
ser transformada no best-seller de que tanto preciso”, tentava se justificar.
Histórias, ouvia muitas, mas todas bastante parecidas, com começos e finais
semelhantes. Novidade! Era isso o que queria. Precisava de novidade. Carecia de
um enredo que nenhum escritor ainda houvesse explorado. Será que existia?
CONTINUA
* Jornalista, radialista e escritor.
Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981
e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras
funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e
“Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos &
Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário),
página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia
Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Enredos cheirando a novidade não existem, pois basta que se olhe em volta e se ache mais alguns falando do mesmo tema e da mesma forma. Ou quase. O que difere o sucesso do fracasso é algo que nem decanos editores sabem o que é. Está aí na sua história.
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