Holocausto, traição e tempo
* Por
Urariano Mota
Somente para corações
fortes recomendo o romance que eu ganhei no Dia dos Pais, e somente ontem pude
iniciar a leitura: “Capesius, o farmacêutico de Auschwitz”.
Insisto: recomendo-o,
mas somente para corações fortes. O
livro não possui o nível de reflexão e estética de Primo Levi em “É isto um
homem?”. Mas tem uma contundência mais imediata. Ontem, antes de dormir,
comentei com a minha mulher: a gente conhece muito pouco a natureza humana. Na
maioria das vezes, conhece nada.
Quantas vezes nos
chocamos com a barbárie em países africanos (são bárbaros, logo), quantas vezes
nos revoltamos, com absoluta justiça, contra o fundamentalismo que corta
cabeças? Mas o que dizer de militares cultos, de uma Alemanha culta, de oficiais
que compram dentes de ouro de prisioneiros e não cumprem o pagamento de um copo
d’água?
Copio do release da
editora:
“Quando vivia em
Schässburg, na Transilvânia, Victor Capesius era farmacêutico e representante
comercial dos produtos Bayer. Durante a guerra, foi recrutado para ocupar o
prestigiado cargo de Oficial da SS como farmacêutico-chefe de Auschwitz do
outono de 1943 até a evacuação do campo de concentração. Entre as suas
atribuições constavam distribuir o gás utilizado nas câmaras de extermínio e
selecionar os que iriam para a morte.
Certo dia, após a
chegada de um trem de sua terra natal, Capesius identificou vários homens e
mulheres, antigos vizinhos e conhecidos, que desembarcavam no principal campo
de concentração do nazismo; pessoas que sequer imaginavam o massacre final que
as aguardava. A sangue-frio, enviou muitos deles para as câmaras de gás e se
apossou de seus objetos de valor.
Por meio da
investigação das relações entre os vários personagens que estiveram em
Auschwitz – tanto as vítimas quanto agentes que trabalharam em prol do
Holocausto –, Dieter Schlesak nos apresenta uma complexa colagem de narrativas,
documentos e imagens do horror nazista. Capesius, o Farmacêutico de Auschwitz é
uma obra comovente, inquietante, dada a intensidade de sua pujança linguística,
carregada de autenticidade”.
Copio do próprio
livro:
“Vejo labaredas
flamejando em uma vala comprida, ouço urros, choro de criança, cachorros
latindo, tiros de revólver. Chamas altas encobrem sombras pululantes. O ar está
carregado de fumaça, de cinzas voando e de cheiro de carne e cabelos
chamuscados. ‘Não pode ser verdade’, berra o homem ao meu lado. Cães
pastores-alemães tangem pessoas vivas em direção às labaredas: mulheres,
crianças e doentes. Uma onda de calor. Em seguida, tiros. Uma cadeira de rodas
com um velho é atirada às chamas — grito estridente. Bebezinhos voam para o
fogo como se fossem vasos brancos de flores... Um menino tenta escapar, mas os
pastores-alemães o caçam, obrigando-o a ir para o meio do fogo. O grito fica
para trás. Uma mulher com o seio descoberto amamenta seu filho. Ela e o bebê
caem na incandescência. E lá se vai um gole de leite materno para a eternidade”
Quero dizer, enfim. A
gente perde a vida com tanta bobagem, lendo tanto lixo, nulidades, para matar o
tempo, “enquanto o tempo nos enterra”, como escreveu Machado de Assis. E livros
assim evitamos, porque “são pesados”. Somos levianos, melhor seria dizer.
Devíamos, devemos ser bem mais rigorosos, fominhas, com o que fazemos do nosso
reduzidíssimo tempo.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Diante da pilha de livros separados para de fato eu ler, tenho dúvidas. Não tenho tempo nem de ler os clássicos, os tantos que ainda me faltam, pois o tempo me foge, por extinção e não por desculpas ou fuga. O que ler? Ainda indecisa. Para mim é difícil abraçar a barbárie, a insensatez, as ações macabras nossas contra nossos semelhantes. Até escrever isso nos incomoda. Somos maus e covardes.
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