Fotos: Maria das Dores Guimarães Gomes - Arquivo
Vamos brincar na Praça de Esportes?
* Por
Mara Narciso
Em 1961, aos seis anos
de idade e estudando no Colégio Imaculada Conceição de Montes Claros, fui morar
no centro, à Rua Carlos Gomes, 167, apartamento 103. O prédio,
recém-construído, no qual morei por dez anos, era pequeno, com quatro
apartamentos simples e apertados. O que morávamos ficava na parte de trás.
Entre um lance e outro da escada, do primeiro ao segundo andar, havia uma
abertura, de onde as crianças espiavam a rua. A greta para o mundo ficava
fechada, porque a vizinha de baixo tinha sua janela acoplada à janela da escada
e exercitava o seu direito de fechá-la, para o meu desespero, do meu irmão
Helder e dos primos Virgínia, Vânia e Júnior, que moravam no apartamento de
baixo. Quando aberta, ficávamos sentados no chão da escada, com as pernas
dependuradas para fora, atrás das grades, nos deliciando com o mundo lá fora.
O prédio tinha um
terraço grande, onde podíamos brincar de cabana com os restos de madeira da
construção, e andar de bicicleta. Era perigoso, pois tinha uma mureta baixa. As
crianças ficavam lá no alto por boa parte do dia, mas a minha mãe Milena e
minha tia Ninha iam nos vigiar ou mandavam alguém. Estar no terraço era a
glória, mas de vez em quando, devido às brigas pela água que nos faltava, o
dono do prédio mandava fechá-lo, e nós sofríamos, presos em casa. Ainda não
tinha televisão, que viria em 1964.
Quando fiz sete anos,
Helder e eu fomos aprender a nadar com Sabu, o grande professor de natação, na
Praça de Esportes, que ficava a dois quarteirões. Milena nos levou umas poucas
vezes e depois íamos sozinhos. Lá conhecemos Ricardinho, Patrícia e Decinho.
Eram meninos que moravam num prédio vizinho, na Rua Lafetá. Todos os dias nós
íamos visitá-los. Estar lá era garantia de mais espaço e estripulias. Subíamos
na janela do quarto de Patrícia, íamos para o exterior do prédio e andávamos
sobre o telhado da casa vizinha, circulando pelo parapeito, loucamente.
Fazíamos equilibrismo e escalávamos tudo em volta. Apenas por milagre ninguém
se machucou. Foi naquela casa que escutei pela primeira vez a música Alegria,
Alegria, de Caetano Veloso, num disco compacto. Ouvimos mil vezes, até quase
furar o vinil, que tinha duas músicas.
A Praça de Esportes,
inaugurada em 1942, ocupava todo um grande quarteirão. Era cercada por uma
cerca de arame debaixo de outra cerca, esta de fícus. Para entrar, era preciso
ter pagado a mensalidade, e na portaria falávamos o nome do pai. Como íamos
todos os dias, o porteiro (que olhava uma lista) não nos perguntava nada. Tinha
vários portões, sendo o acesso à piscina pela entrada principal. Havia um
jardim bem cuidado, com canteiros de flores, chão de cimento e árvores
esculpidas em vários formatos. Lembro-me de um bule de fícus. Lá voavam
borboletas que caçávamos com um pegador feito por nós mesmos, de arame e tule.
Ninguém nos coibia. Corríamos e as pegávamos, matando-as e espetando-as com um
alfinete numa placa de isopor. Havia uns poucos tipos que capturávamos, e até
lhes dávamos nomes. Uma delas meu irmão batizou de “lócus pocus”. Arrepio ao me
lembrar da nossa crueldade.
Na frente à esquerda
ficavam as quadras de futebol de salão. Então, vinha a construção principal com
amplos vestiários, homens à direita e mulheres à esquerda. Os corredores eram
cobertos por estrados e havia água por baixo. O cheiro de cloro me vem às
narinas. Só entrava na água quem tomasse uma ducha. A aula das meninas era às
15 h e a dos meninos às 16 h. A piscina era semi-olímpica. Sabu nos dava uma
tábua retangular e ficávamos, após o aquecimento, batendo pernas e atravessando
a piscina pra lá e pra cá. Após a aula as meninas pulavam para nadar como
quisessem. Depois de três meses, o professor me pediu para nadar. Como não tive
coragem, ele me pegou no colo e me jogou no meio da piscina. Então eu nadei.
Atrás da piscina
ficavam as mesas de ping-pong. Eu não conseguia jogar bem, mesmo depois dos dez
anos. No fundo, à direita, havia a boate. No passado havia um baile de 10 as 12
h da manhã, no qual os jovens dançavam. Desativada, nas imediações, nós
caçávamos lagartixas, ovos delas (moles, que pulam quando jogados no chão) e
coletávamos látex de uma velha figueira que ficava ao lado do campo gramado.
Com ele fazíamos chicletes. Caso fosse veneno teríamos morrido. Atrás da boate
tinha campos de tênis, de terra vermelha. No fundo, do lado esquerdo tinha uns
pés de jambo.
A grande festa eram os
brinquedos que estavam em dois locais, perto da piscina infantil e também nos
fundos. Tinha dois escorregadores imensos, de madeira, que hoje seriam
proibidos, devido ao risco de acidentes. Talvez fossem liberados com capacete e
rede de segurança e não tinha nada disso. Os balanços eram altos, e nós
balançávamos de pé, até o limite de rodar por cima da trave, cantando aos
berros e rindo a bandeiras despregadas. Nas férias, fazíamos isso todos os
dias, por vários anos. Era a grande diversão de meninos enclausurados. Sabíamos
todas as letras de músicas da moda, que ouvíamos no rádio e discos. Não havia
qualquer censura, moderação ou medo. Ninguém nos perturbava, olhava ou marcava
hora. Após a aula de natação, sem relógio, a noite era o aviso de irmos para
casa. Nunca aconteceu nada. Nós adorávamos a liberdade infinita, assim como era
a confiança dos pais no ambiente da praça. Nem dá para acreditar.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Pois é... comparado esse tempo tão sem receios com os "medos" de hoje... "Rindo a bandeiras despregadas"! Acho que só nós dois, o Aurélio e mais uns quatro ou cinco conhecemos essa expressão. Não espalha, não espalha! Abraços, Mara.
ResponderExcluirMeu ex-marido falava isso. Aprendi com ele. É mesmo expressão antiga. Obrigada, Marcelo.
Excluir