O bombardeio de São Paulo
* Por
José Carlos de Macedo Soares
Só na manhã de 9 [de
julho de 1924] os paulistanos começaram a perceber o abandono em que estavam.
No correr desse dia os revoltosos ocuparam toda a cidade. Foi nessa manhã que
assistimos a uma cena de saque num armazém da firma Matarazzo, realizada por
elementos maus da população.
Depois da ocupação
revolucionária interveio o sr. Prefeito no sentido de manter a ordem, defender
a propriedade pública e privada, assegurando a continuidade da administração
municipal.
Tão calmo e pacífico
correu o dia 10 que a Associação Comercial cogitou de refazer a vida normal da
cidade, pela reabertura do comércio e das fábricas.
Enquanto o governo
estadual se manteve no seu posto, a população e seus principais representantes
rodearam-no de um apoio firme e completo. Nunca ouvimos nesses dias uma palavra
de dúvida, e, se esse apoio moral não passou eficazmente para o terreno da
cooperação material, foi exclusivamente por culpa do governo cujo otimismo e
tranqüilidade dispensavam completamente qualquer colaboração fora da máquina
governamental.
Diante de um governo
de fato, em face da ocupação militar triunfante, a população tratou de defender
os seus interesses vitais, provendo por seus chefes naturais às necessidades
mais urgentes da cidade.
No dia 11, às 10 horas
da manhã, depois de dois dias tão calmos que se cogitava, como dissemos, de
restaurar a atividade comercial do centro urbano, foram ouvidos os primeiros
estampidos do bombardeio. No dia 12 o fogo dos canhões legalistas semeava a
morte e a destruição a esmo pela cidade.
Nesse dia, a impressão
pública de terror diante do bombardeio implacável, determinou a intervenção do
corpo consular de S. Paulo junto ao general Sócrates, e em seguida a mensagem
telefônica de uma comissão de paulistas dirigida ao presidente da República.
O general Sócrates
propôs aos cônsules que o general Isidoro lhe remetesse uma planta da cidade
assinalando os sítios ocupados por suas tropas para que aí se concentrassem os
fogos legalistas!... O sr. presidente da República, por intermédio do seu
ministro da Guerra, confundindo propositalmente uma grande cidade de 700.000
habitantes com a restrita zona ocupada por 3.000 soldados revolucionários,
declarou que não podia prescindir do emprego da artilharia contra o inimigo,
teimando assim, a pretexto de hostilidade militar, em semear por toda a vasta
capital paulista o fogo de suas granadas. Outras tentativas foram feitas para
que cessasse este crime inqualificável, mas todas elas foram frustradas ou
repelidas pelo governo federal e seus agentes.
O bombardeio demoliu e
matou impunemente em S. Paulo durante cerca de vinte dias. As balas caíam em
quase todos os bairros da cidade. Semearam o pânico; provocaram cenas intensas
de horror e sofrimento; causaram prejuízos mortais e materiais de toda casta.1
Várias tentativas foram
feitas para o restabelecimento da paz. Não só os interesses imediatos da cidade
martirizada eram por nós considerados. Visávamos ainda os altos interesses da
nação, o seu futuro, o apaziguamento das paixões e a restauração da concórdia
entre seus filhos.
Os revoltosos
permaneceram em S. Paulo enquanto quiseram. Tomaram livremente a resolução de
abandoná-la e o fizeram com a calma e as facilidades que todos conhecem. A
legalidade resumiu sua atividade militar ao bombardeio às cegas da cidade. Dos
rincões de Guaiaúna semeou a morte pelos paulistanos desarmados. Destruiu
propriedades de pessoas que nada tinham que ver com a revolta. Fez um grande
mal a inocentes, cometeu as maiores injustiças. E, no fim desses dias de
tragédia, as tropas legais entraram na cidade, depois da retirada dos
revoltosos...
Mas os responsáveis
por essa intolerável violência tinham razões de extrema gravidade moral para
não procederem com a população de S. Paulo com a injustiça, a iniqüidade, a
crueldade com que o fizeram. Na comunhão brasileira S. Paulo representa um
centro de tradições patrióticas que só pode desconhecer o indivíduo totalmente
ignorante da História do Brasil. No conjunto da nossa civilização moderna, S.
Paulo é uma força de progresso tão evidente que seu papel na Federação já foi
acertadamente comparado ao da locomotiva arrastando um pesado comboio,
É certo que na
política nacional o papel de S. Paulo não tem estado na altura de suas
responsabilidades sociais e econômicas; mas a esse abstencionismo paulista tem
correspondido um desinteresse completo por cargos, empregos e propinas
federais, de modo que S. Paulo, concorrendo poderosamente para o orçamento da
União, deixa todas as vantagens na distribuição das rendas que saem
principalmente do seu labor, aos outros membros da Federação menos favorecidos
do que ele, pela fertilidade do seu solo, pela energia, espírito de iniciativa
e amor ao trabalho dos seus filhos.
Mas no círculo
restrito dos interesses políticos do momento, o fato essencial é que a
candidatura Bernardes teve seu surto principal graças ao apoio desinteressado
de S. Paulo; manteve-se nas suas esperanças devido unicamente à fidelidade dos
políticos paulistas; alcançou finalmente as cumeadas do poder, graças ao
concurso moral e material do Estado de S. Paulo. A unanimidade da imprensa
política de S. Paulo concorreu poderosamente para a formação da opinião
"bernardista" no Estado, favorecida pela pouca simpatia de que gozava
o seu ilustre antagonista, cujas atitudes anteriores foram muitas vezes opostas,
com ou sem razão, ao sentimento paulista.
Pois se tinha sido S.
Paulo o esteio da candidatura Bernardes; se esse candidato só chegou ao Catete
valendo-se da força moral de S. Paulo na Federação como poderiam os paulistas
esperar que os tratassem como inimigos e os castigassem coletivamente a bala,
como criminosos?
Durante quatro dias de
luta os paulistas apoiaram fielmente o governo legal. Depois, submetidos ao
governo de fato dos revolucionários, jamais deram prova de adesão à causa
oposta à legalidade. O governo nunca os acusou, nem poderia mesmo ter acusado,
de deslealdade, nem apresentou nenhuma prova de que tivessem pactuado com os
revolucionários. Mas nem por isso os poupou, nem deixou de matá-los friamente à
distância, crivando a cidade das balas de seus canhões.
Todas as manifestações
paulistas em defesa da população bombardeada foram uniformemente de respeito e
acatamento à autoridade legal. Mesmo nos piores dias, sempre nos voltamos para
o aparelho legal do país do qual reclamamos as medidas legais reguladoras da
vida pública no Estado. Em todas as nossas mensagens escritas, providências ou
reclamações, reconhecíamos o governo legal, superior pela força da lei ao
governo da força à cuja lei estávamos forçados a obedecer.
S. Paulo e sua
população continuavam, pois, sob a égide do aparelho constitucional da
República. Não era uma cidade inimiga, mas uma cidade ocupada pelo inimigo.
O presidente da
República tinha os mais sérios compromissos políticos com o Estado em cujos
ombros chegou à magistratura suprema. Mas tinha maiores compromissos morais com
o grande centro de atividade pacífica, que servia eventualmente de teatro a um
dos atos da tragédia provocada pela sua política de vinganças e de ódios e o
qual se mantinha, não obstante a ocupação inimiga, solidário com o organismo
legal do Estado.
Os deveres de
consideração e respeito que prendiam o sr. Artur Bernardes a S. Paulo não eram
só os decorrentes dos seus compromissos de candidato; eram principalmente os
que derivavam da sua magistratura em face de uma das maiores unidades da
Federação, fiel à ordem legal da República.
Todas essas razões
deviam suster o fogo da artilharia legalista diante da terceira cidade da
América do Sul. Mas todas elas desapareceram diante da necessidade de mascarar
uma extraordinária inatividade militar. Não ousando combater os
revolucionários, a legalidade preferia crivar de balas, à distância, a casaria
e os habitantes inermes de uma cidade laboriosa e pacífica, à qual tinha, pelo
contrário, o dever de proteger e defender. Incerto da fidelidade dos seus
defensores, o governo, não podendo contemporizar em silêncio, massacrava de
longe inocentes e desarmados. S. Paulo foi a vítima de um pretexto. Afirmava o
governo que o bombardeio fazia parte do seu plano de reconquista da cidade, mas
de fato o quartel general legalista estava farto de saber que os seus tiros,
semeados a esmo na cidade, não atingiam nem podiam atingir os revoltosos. Sabia
que militarmente de nada adiantavam às operações, e que eles apenas vitimavam,
nas casas e nas ruas, os habitantes incapazes de se defenderem...
Esse terrível
espetáculo durou cerca de vinte dias e duraria eternamente se os revoltosos não
se decidissem a largar S. Paulo, descrevendo pelo interior uma larga
trajetória. Fizeram-no eles quando quiseram, sem incômodos, sem pressa, sem
atropelo. Depois do abandono voluntário, a legalidade retomou a cidade como o
teria feito se não disparasse um único dos seus canhões.
No Relatório
apresentado pelo prefeito de S. Paulo, dr. Firmiano Pinto, há as seguintes informações
oficiais sobre os resultados do bombardeio da cidade:
"A Inspetoria
Geral de Fiscalização procedeu a um penoso trabalho de exame em toda a cidade
dos prédios danificados por granadas e balas e apurou devidamente verificados
1.182. Por inspeção posterior pode-se asseverar que esse número vai a mais de
1.800."
2. O ilustre juiz
federal de S. Paulo, no despacho de pronúncia relativo ao processo dos
revolucionários de 1924, refere-se ao bombardeio da cidade cujo espetáculo esse
magistrado assistiu e acompanhou quotidianamente.
(Justiça A revolta
militar em São Paulo, 1925.)
*
Jurista, formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
historiador e político, membro da Academia Brasileira de Letras.
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