A dupla nacionalidade de D. Pedro 1
* Por
Sérgio Corrêa da Costa
A questão da
nacionalidade de D. Pedro I constitui um interessante problema de direito
internacional privado. Português de origem, tornou-se brasileiro, em 1822, com
a independência e o império. Tendo conservado até a morte esta segunda
nacionalidade, como se verá adiante, no desenvolvimento do capítulo, não perdeu
nunca a nacionalidade portuguesa, pois do contrário, não poderia ter sido proclamado
rei de Portugal e aceito, mais tarde, como regente em nome da rainha
fidelíssima.
A Constituição
brasileira não se opunha a que o imperador conservasse seus direitos
hereditários à coroa de Portugal. O artigo 104 não obrigava a renúncia a eles.
Dispunha, apenas, que o soberano não poderia sair do país sem o consentimento
da Assembléia Geral. Ora, daí se conclui que uma vez dado o consentimento bem
poderia ir o imperador assumir a coroa de Portugal, que lhe pertencia por
direito de nascimento e de primogenitura. É incontestável, igualmente, que D.
Pedro I não podia conservar esses direitos sem conservar, também, a
nacionalidade portuguesa.
O tratado de
reconhecimento da independêcia por parte de Portugal, assinado no Rio de
Janeiro, a 29 de agosto de 1825, diz no preâmbulo: "S. M. F. [...], por
seu Diploma de treze de maio do corrente ano, reconheceu o Brasil na categoria
de Império Independente, e separado dos Reinos de Portugal e Algarves".
O diploma de 13 de
maio, nele mencionado, reza:
E por sucessão das
duas coroas, Imperial e Real, diretamente pertencer a Meu sobre todos muito
amado, e prezado Filho o Príncipe D. Pedro, nele, por este Meu Ato, e Carta
Patente, cedo e transfiro já de Minha livre vontade o pleno exercício da
Soberania do Império do Brasil, para governar, denominando-se Imperador do
Brasil e Príncipe-Real de Portugal e Algarves.
Por aí se vê que D.
João VI, cedendo ao filho a soberania do Brasil, o reconhecia, ao mesmo tempo,
como herdeiro da coroa de Portugal. É verdade que o diploma não foi anexado ao
tratado, mas a sua menção no preâmbulo significa que ele foi presente aos
plenipotenciários. E isso é mais do que suficiente para demonstrar que o Brasil
teve conhecimento oficial do ato e a ele não fez oposição.
Não é possível supor
que os plenipotenciários brasileiros tenham admitido a menção de um ato que
desconhecessem. Por outro lado, se os ministros do poder Executivo, sem cujo
consentimento não seria viável concluir, ratificar e promulgar o tratado,
entendessem que a sucessão ao trono português não convinha ao Brasil, teriam
logo aconselhado ao imperador que renunciasse a ela no próprio tratado, o que
evitaria, por certo, grandes embaraços futuros.
Portando, a única
dedução razoável é que, no conceito dos conselheiros da coroa, o imperador
podia conservar seus direitos hereditários e talvez mesmo ocupar,
simultaneamente, os dois tronos, sem violar a Constituição brasileira.
Falecendo el-rei de
Portugal, a 10 de março de 1826, D. Pedro aceitou a coroa real, confirmou a
regência nomeada, concedeu uma anistia, outorgou uma Carta constitucional,
abdicou em favor de D. Maria da Glória e deu ciência de todos esses atos à
Assembléia Geral, na sessão de abertura, que teve lugar a 6 de maio do mesmo
ano. Os negócios de Portugal e a ingerência neles do imperador eram francamente
anunciados nas sucessivas falas do trono. Assim, em maio de 1827, comunica o
imperador o contrato de casamento da rainha com o Infante D. Miguel e os
progressos da causa constitucional; em maio de 1829, a partida de S. M. F. para
a Europa e a usurpação miguelista, com a qual se declara disposto a não
transigir; em maio de 1830, o regresso da rainha, colocada sob sua proteção e
tutela.
E a Câmara, embora
cautelosa nos seus votos de graças, não apresentou a menor objeção a tais e tão
relevantes declarações. Pelo contrário. Pode-se dizer mesmo que sancionou os
diversos atos do soberano não os considerando em oposição à lei fundamental e
muito menos como suscetíveis de privar o imperador da coroa e dos direitos de cidadão.
A abdicação, por seu
lado, não veio alterar, de nenhum modo, a capacidade jurídica de D. Pedro I,
que continuou sendo, para todos os efeitos, brasileiro. Senão, vejamos.
Os casos de cassação
dos direitos de cidadania estão enumerados no artigo 7º
da Constituição imperial e referem-se, apenas, aos que se naturalizarem em país
estrangeiro e aos que aceitarem empregos, pensões ou condecorações de qualquer
governo estrangeiro sem a competente licença do imperador. Por outro lado, o
artigo 104, único que se refere à abdicação, não diz que deixa de ser
brasileiro o imperador que se entende haver abdicado a coroa pelo fato de sair
do território nacional sem autorização da Assembléia Geral. Não há, pois, como
se vê, nenhum artigo da Constituição que autorize qualquer afirmação em
contrário.
Mesmo que o
ex-imperador tivesse declarado publicamente a sua intenção de renunciar,
também, aos seus direitos de cidadania, isto não seria suficiente para
alterar-lhe a capacidade jurídica uma vez que a nacionalidade brasileira não é
facultativa.
Tivessem tais
declarações maiores conseqüências jurídicas, viriam elas consolidar a
nacionalidade brasileira do fundador do império. Assim, no decreto em que
nomeou tutor para seus filhos, é manifesta a sua vontade nesse sentido.
"Tendo maduramente refletido sobre a posição política deste império,
conhecendo quanto se faz necessária a minha abdicação, e não desejando mais
nada deste mundo senão glória para mim e felicidade para a minha pátria, hei
por bem... etc. E essas palavras ganham excepcional importância pois foram
escritas em momentos angustiosos e de intensa agitação popular, quando as
facções em armas o levavam à decisão suprema de abdicar.
Mais tarde, em Paris,
e de modo solene, D. Pedro manifestou diversas vezes a sua inabalável decisão
de conservar-se cidadão brasileiro. Conforme comunicou o nosso ministro na
capital francesa, José Joaquim da Rocha, à Secretaria de Estado, o imperador,
alegando a sua qualidade de súdito brasileiro, convidou-o para testemunhar oficialmente
o nascimento do príncipe ou princesa que a imperatriz estava próxima a dar à
luz.1 E anunciando, dias depois, o nascimento de D. Maria Amélia, acrescentou
que D. Pedro, tendo convidado a todos os brasileiros que se achavam em Paris,
não convidara um só português, à exceção de sua irmã; e que no auto lavrado
pelo notário da Casa Real, em virtude da recusa do cônsul-geral do Brasil,
declarara ele, muito expressamente, a sua qualidade de brasileiro, protestando
ao mesmo empo contra a recusa daquele agente. No mesmo ofício,2 faz saber o
nosso ministro que, no dia seguinte, foi o imperador, de uniforme e com toda a
sua comitiva, à casa da Legação, por motivo do aniversário do seu augusto filho
e ainda então se declarou brasileiro.
De outro ofício, com
data de 2 de dezembro de 1831, consta que por ocasião do nascimento de D. Maria
Amélia o imperador declarara publicamente que "jamais deixaria de ser
brasileiro". E, rogado pelos portugueses para defender os direitos de sua
filha, impusera como condição o abandono imediato da regência se,
eventualmente, viesse a surgir qualquer motivo de guerra entre Portugal e
Brasil.
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Não tem o menor
fundamento a alegação de que D. Pedro perdeu os direitos de cidadão por ter
violado o § 2º artigo 7º da Constituição quando empregou-se no serviço do país
a que primeiro pertencera, sem a necessária licença. Ora, os atos praticados
por D. Pedro em relação a Portugal, depois da abdicação, foram simplesmente a
continuação dos que exercera quando imperador em exercício. Como chefe do poder
Executivo, não necessitava o soberano de autorização para praticar qualquer dos
atos mencionados no § 2º artigo 7º da Constituição, ou, se quiserem, dava ele,
a si mesmo, a precisa licença sob a responsabilidade de seus ministros. Foi o
que se fez e, nessas condições, aceitou ele a coroa de Portugal e exerceu todas
as funções inerentes ao cargo, embora por pouco tempo. E disso, como se viu,
com aprovação da Assembléia Geral, "que tem o direito e o dever de velar
na guarda da lei fundamental".
A licença dada pelo
imperador a si próprio não poderia ter caducado com a abdicação. Tivesse ele,
por exemplo, antes do 7 de abril, dado permissão a um funcionário brasileiro
para aceitar uma comissão de um governo estrangeiro, essa autorização teria
cessado com a renúncia de D. Pedro ao trono? Claro que não. Por conseguinte,
não se pode privar o imperador daquilo que não se retiraria a um simples
cidadão.
O próprio governo
brasileiro forneceu, em 1833, um argumento decisivo em favor do que
sustentamos. Por decreto de 4 de dezembro, foram destituídos dos direitos de
cidadania o Marquês de Resende e outros brasileiros porque tinham aceitado
empregos e condecorações do governo português sem a necessária licença. Porque
não se procedeu, então, de igual modo, contra D. Pedro, que era o próprio chefe
do governo que havia empregado e condecorado os brasileiros por isso
destituídos? A resposta é clara. Porque já havia a convicção de que os casos
eram diversos e que o imperador prescindia da autorização exigida aos demais
súditos. Poderiam privá-lo dos direitos de cidadão os atos que não o tinham
privado da coroa?
(CONTINUA)
* Advogado,
diplomata e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras
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