Vergonha nacional e paixão por livros
* Por
Urariano Mota
Depois dos últimos
resultados da prova de redação do Enem, parece que a educação no Brasil oscila
como um pêndulo entre dois extremos. O movimento do relógio vai do ótimo de
poucos estudantes ao péssimo da maioria. O dado unificador no conjunto de
tantas disciplinas, de matemática a história e ciências, foi a marca da prova
de redação. Pelas notícias na imprensa, conhecemos, por um lado, os novos
gênios – aqueles que alcançaram o máximo, a nota 1.000 em redação, 250 apenas,
em mais de 6 milhões. Por outro lado, o escândalo dos 529 mil alunos que
tiraram a nota zero, num universo em que a maioria obteve até 600 na redação.
Desse... “escândalo”, que é o de jovens desumanizados
todos os dias e que ninguém vê, mas que vira escândalo quando aparece em nota
de vestibular, uma das expressões foi o artigo de Arnaldo Niskier, doutor em
educação, sob o título de Vergonha Nacional. Escreveu o imortal ad ABL na Folha
de São Paulo: “Estamos vivendo em nosso país tempos sombrios em matéria de
qualidade do ensino, especialmente se considerarmos a educação pública...”
(lembra a narração de filme de terror). E continua:
“O que esperar
dessa geração? Quando em um universo de
quase 6 milhões de alunos só 250 tiraram a nota máxima (mil) na indispensável
redação, pode-se inferir que estamos diante de uma fase caótica, a exigir
providências que não podem mais tardar... Para acabar com essa vergonha, só uma
ampla reforma”.
Mas não aponta qual ou
para onde.
No outro extremo, as
notícias falavam dos ótimos 250 estudantes, mais resistentes e heroicos, porque
em menor número, que os 300 de Esparta. Dos últimos guerreiros do escândalo da
nota mil em redação, se falou que tunham em comum a paixão pelos livros. Entre
as séries "O Senhor dos Anéis" e "Crônicas de Gelo e
Fogo", autores J. R. R. Tolkien,
George R. R. Martin, e Dan Brown, de "O Código Da Vinci",e treinos
para a prova, esses jovens leem. E tal coincidência causou o maior espanto
entre o escândalo.
Mas deveria ser claro,
para todos e em todos os tempos: sem ler, sem o entendimento do que se lê,
ninguém vai a lugar nenhum, do porto do Recife à estrela da última nebulosa no
espaço mais distante. Essa notícia, de jovens que melhor escrevem porque gostam
de ler, é uma verdadeira redescoberta da pólvora. Ou uma reinvenção da roda.
Ainda assim, a notícia me faz refletir para que serve a leitura, ou, num salto
de qualidade, para que serve a literatura.
Para que é mesmo que
serve a literatura? De um ponto de vista estrito de grana, de moeda que compra
alimento, álcool, camisa que sirva além do corpo de quem escreve, que vá além
da vaidade do autor, existe alguma utilidade na literatura? Existe algo nela
que diga somos todos humanos, e o reino da felicidade é a socialização da carne
espírito? Existe nela algo que, sem cair dos seus objetos mais nobres, chame a
atenção para que a poesia tem um poeta em estado de necessidade, e por isso lhe
traga um pouco mais de carinho e pão?
Nos tempos em que
pensei ser professor, sempre tentei dizer a jovens estudantes que a literatura era fundamental na vida de todos. Mas quase nunca tive sucesso nessas
arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não fecundar.
Primeiro porque a literatura ministrada a eles, em outras aulas, destruía todo
o gozo de viver. Os mestres, profissionais ou burocratas, ensinavam-lhes a
anti, a literatura para antas, com listas de nomes, datas e resumos de obras,
nada mais. Em segundo lugar eu não fecundava porque o valor do sentimento, o
sentido de uma rosa, o cântico de amor ou o desajuste de pessoas em uma
sociedade corrupta nada significava para as tarefas mais práticas, que se
impunham.
- O que eu ganho com
isso, professor?
E com “isso”, o jovem,
quando de classe média, queria me dizer, que carro irei comprar com a leitura
de Baudelaire? Que roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa
conversa mole de Machado de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A
riqueza do mundo das páginas dos escritores, a gratidão que eu tenho para quem
me fez homem eu sabia. Mas não achava o que dizer nessas horas quando o petardo
de uma frase de Joaquim Nabuco, por exemplo, poderia ganhar a zombaria de toda
a gente. Eu sorria e me punha a gaguejar coisas estapafúrdias do gênero os
poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava a
lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que
dignificou a humanidade.
- O que eu ganho com
isso, professor?
Quando essa pergunta
me era feita por jovens da periferia, excluídos, isso me ofendia muito mais que
a pergunta do jovem classe média. Aos de antes eu respondia com uma oposição
quase absoluta, porque não me via em suas condições e rostos. Mas a estes
periféricos, não. Eu passava a ser atingido nos meus domínios, na minha gente,
porque eu olhava os seus rostos e via o meu, no tempo em que fui tão perdido e
carente quanto qualquer um deles. Então eu não sorria. Aquilo, do meu
semelhante, me acendia um fogo, um álcool vigoroso, e eu lhes falava do valor
da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria experiência.
Então eu vencia. Então a literatura vencia. Mas já não tinha o nome de
literatura. Tinha o nome de outra coisa, algo como histórias reais de
miseráveis que têm a cara da gente. Que importa? Que se dane o nome, vencia a
literatura.
Então, por fim, essa é
a qualidade maior da literatura, acredito: libertar nos brutos que somos o
nosso melhor humano. É algo muito mais precioso, e eterno, enquanto houver
humanidade, do que tirar uma nota 1.000 na redação do vestibular. Ou, se quiserem, pode ser criado até um
slogan de anúncio comercial: virem humanos e, de desconto, ganhem uma nota mil
no vestibular.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
A Literatura salvou, salva e continuará salvando a jovens, adultos e velhos, sempre. Além de servir à vaidade dos autores.
ResponderExcluirQuem vive como eu, evitando grupos de subservientes “intelectuais” com conchavos, a fim de obter favores, permita-me registrar algumas inconfidências. Num país onde todos são iguais perante a lei, a decepção é grande. Em termos de Brasil, ser escritor ou poeta numa nação cheia de analfabetos e semi-analfabetos, fica ainda mais difícil, e como!!! Os referidos têm apenas uma pequena noção das coisas, são cheios de superstições, de preconceitos, crendices e sem cultura que possibilite a tomada de decisões. Na minha opinião, são como fantoches. Manipulados pelo sistema, crescem, comem, e morrem, esquecidos. Acredito que 50% dos brasileiros alfabetizados não têem o hábito de ler. Muitos leem mal e dificilmente entram numa livraria, nunca assistem a uma peça de teatro,,, (não leem sequer um jornal)!!! A conversa é mais sobre futebol, bebidas... É uma perda de tempo discutir essas coisas!
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