Aconteceu no ano novo
*Por
Marco Albertim
Dois traços distinguem
Hosana de outras moças de sua idade: é magra feito um caniço e tem um riso
idiota; ri à toa, feito um cretino de rua.
O nome que a mãe
escolhera para o batismo e lavratura da certidão no cartório, deu-se por ela
ter nascido num domingo de Ramos; o que não impediu de, aos quatorze anos,
deixar-se deflorar sem tirar da boca larga o mesmo sorriso idiota. Acredita-se
que tenha deixado escapar tão somente um gemido vago, para logo mostrar-se idiota
ouvindo o sussurro oportunista do parceiro. Até hoje não se sabe o nome do
autor. Às insistentes perguntas sobre quem teria sido o colega de classe que a
levara para o matagal atrás do muro da escola, respondeu como se tivesse ouvido
uma zombaria banal; mais ainda quando lhe apontavam para os amassos, as manchas
de terra e os fios de capim acima e abaixo da saia azul-marinho. Hosana não
sustentou a prenhez, abortou sem ter a noção da perda. Às raspagens na vagina
reagiu com paciência cretina; em seguida, ergueu-se da cama com algum esforço,
esboçando um sorriso torto até tornar-se idiota de vez.
Encontramo-la agora na
noite do Ano Novo. O sorriso, de tanto ser visto, tornou-se monótono, um
berloque sem graça no rosto de bochechas salientes. A mãe é cozinheira de uma
família de posses médias; tem a confiança de todos da casa. O sentimento é um
espólio medíocre. Hosana recebeu o seu quinhão, guarda-o não como uma ninharia
do coração, mas como uma almofada que conforta e relaxa seu tronco comprido.
A mãe, findo os
preparativos para a noite festiva, seguiu para casa. Deixou a filha por saber
que se agregaria sem esforço ao séquito das netas da matriarca da casa, e para
assegurar que nem tão cedo o espectro de sua faina sumirá do bangalô à
beira-mar.
Primeiro Hosana
acomodou-se no assento comprido de cimento de uma ponta a outra do terraço.
Fingindo entender tudo o que ouvia da boca dos comensais, ri molemente, sem se
descuidar do próprio perfil. Logo tem a companhia das três netas da velha
longeva. Seguiu, com prazer nas pernas e os braços soltos, para a areia da
beira do mar. Atrás das outras, como convém a uma agregada; conversando pouco,
os olhos fartos de cumplicidade.
Onze da noite, a ceia
é posta na mesa comprida do terraço. As cadeiras foram afastadas para dar
espaço ao cortejo ruidoso dos comensais. Hosana segue atrás das outras, tão
cretina quanto feliz, servindo-se num dos pratos e nos talheres da copa
diversa; com direito ao naco de sua escolha e prazer, do peru assado no forno
da matriarca.
Faltam dez minutos
para meia-noite. O terraço se esvazia. A matriarca, pioneira na rotina dos fins
de ano, prefere ficar no terraço em companhia da irmã, sentada na
espreguiçadeira de seu uso.
O ajuntamento, na
beira-mar, espreme-se à espreita da pirotecnia dos fogos de artifício.
Meia-noite. Os estrondos se fazem ouvir. O monte de luzes que cobre a areia e a
escassez das ondas da maré baixa, os gritos, os abraços e apertos de mãos,
escondem a frigidez de Acaú em noites de rotina. Não há lua. Ninguém sente falta
de sua luz. Hosana tem o costume de olhar para a lua quando a luz cobre a
calçada vazia de assentos da casa em que mora. Sorri para o lume do astro,
certa de que a claridade é cúmplice de sua cretinice. Agora ela conta os pontos
luminosos que se espalham a cada eclosão. Pula como as outras, como os adultos.
Pode sorrir alto, e sorri tão trêfega que dá conta da juntura perfeita dos
dentes, inda que longos, contrastando com a redondez do rosto terroso.
As amigas de Hosana
não fazem uso do cumprimento formal, tão necessário quanto postiço, dos adultos
com frases feitas. Mas ela quer ser cumprimentada. Ninguém a procura, a não ser
as amigas. As amigas encolhem-se nos abraços das mães.
É a primeira vez que
Hosana me vê. Ela estende-me a mão com o braço meio encolhido, por certo
temendo olhos em nada parecidos com o lume da lua. Seguro sua mão. Com o outro
braço, puxo-a para perto de meu tronco, para abraçá-la, inda que com receio de
amassar sua compleição fina.
Na volta ao alpendre,
há chispas nas conversas. A comida muita traz fastio nos corpos sãos. Também
Hosana boceja sem medo seu sono manso. Ela recolhe-se à cama no quarto ao lado
da casa. Dorme sozinha. Não tem medo do escuro nem da solidão, porque sabe que
sono não desfaz seu sorriso cretino.
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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