Vocábulos
e seixos
* Por Pedro J. Bondaczuk
As palavras são caprichosas e volúveis e
transformam-se com o tempo. Não todas, claro, mas boa parte delas passa por
esse processo de transformação (não me cabe julgar se para melhor ou para pior).
Muitas caem em desuso, outras se modificam, outras tantas surgem como que do
nada e outras, ainda, “sofrem erosão da corrente do pensamento”, conforme
afirmou Antonio Candido, na magnífica crônica intitulada “Língua, pensamento e
Literatura”, publicada no jornal Folha da Manhã em 25 de junho de 1944 (ocasião
em que eu tinha, apenas, um ano e meio de idade).
Fascinam-me essas metamorfoses vocabulares,
semânticas e/ou gramaticais. Quando cursei, no início da década de 60, o então
Curso Científico, estudei Gramática Histórica na primeira série, na disciplina
Português. Hoje, infelizmente, esse importante estudo foi suprimido. Daí as
pessoas terem tanta dificuldade em aprender (como devem) o nosso rico idioma. Sinceramente,
gostaria de saber quem (e por que) suprimiu esta matéria do currículo. Com todo
o respeito: deve ser uma macro, mega ou hipercavalgadura, ou qualquer outro
superlativo mais forte (se é que existe algum) que se queira usar.
Esse estudo da evolução do modo lusitano de se
expressar ao longo do tempo era facilitado pelo fato de havermos estudado, no
antigo ginásio, o idioma-matriz da Língua Portuguesa (e do espanhol, francês,
italiano, romeno etc.): o latim. Algum “gênio” (provavelmente um asponi
desocupado, ávido por mostrar serviço aos seus superiores hierárquicos do
Ministério da Educação) achou que isso não era importante. Sugeriu (e outras
cavalgaduras acataram, de bom-grado, essa “brilhante” sugestão), que fosse
suprimido, pura e simplesmente, do currículo. Uma pena!
Desta forma, os estudantes de hoje estão privados,
entre tantas e tantas e tantas outras coisas interessantes, do conhecimento,
por exemplo, de como o “ene”, de determinadas palavras, se transformou no til.
Ou de como o “sc” de outras virou o cedilha. Ou como ocorreu a simplificação do
tratamento “vossa mercê” primeiro para “vassuncê” e, finalmente, para “você”.
Gosto de literatura. Gosto de fazê-la e de
comentá-la, ambas com a mesmíssima satisfação. Aviso, de antemão, aos que não
me conhecem: não me considero crítico literário, embora comente, a todo
instante, livros e mais livros, ou trechos esparsos deles. Faço-o, porém, à
minha maneira, sem método e sem compromisso.
O leitor paciente e fiel, que me acompanha há anos
nestas descompromissadas reflexões diárias, sabe, de sobejo, que sou antes de
tudo um provocador. Não fujo de temas polêmicos. Ao contrário, busco-os com
obsessão. Faço isso, porém, não para contrariar quem quer que seja (embora
muitos se sintam contrariados). Ajo dessa maneira para suscitar debates que,
quando em alto nível, tendem a nos conduzir ao esclarecimento de assuntos
obscuros.
Apesar de ser provocador, contudo, não critico, por
exemplo, textos de que não gosto. Não me sinto no direito de acabar com os
sonhos de ninguém que aspire o estrelato no complicado, frustrante e pantanoso
campo da Literatura. Outro que os arruíne. Recuso-me a esse papel. Comento,
somente, as obras e autores que aprecio. Considero esses escritores amigos do
peito, mesmo não conhecendo (pessoalmente) nenhum deles. A maioria, é verdade,
viveu séculos (quando não milênios) antes de eu nascer. Não haveria, pois, como
se estabelecer esse conhecimento mútuo, não é fato?
A alguns artífices do idioma, são facultadas
licenças, interditas aos mortais comuns. Atentem, por exemplo, ao início deste
maravilhoso soneto: “Alma minha gentil que te partiste/tão cedo desta vida
descontente...”. Fossem estes versos escritos por Pedro J. Bondaczuk (que
pretensão!), os críticos investiriam, de imediato, apontando, dedo em riste, o
cacófato “alma minha”. Como foram escritos por ninguém menos do que Camões...
quem ousaria se dar a esse atrevimento?!
Nada, todavia, me fascina mais do que estudar a
transformação das palavras, quer na maneira de serem escritas, quer (e
principalmente) em seu significado. E também, por que não, em sua pronúncia. Em
geral, elas perdem asperezas originais e se amaciam, atenuam, alisam com o
passar do tempo e com a sucessão das gerações. Fossem pedras, se tornariam
agradáveis ao tato.
Antonio Candido escreveu a esse respeito, na crônica
citada acima: “Ora, os vocábulos são como os seixos dos rios. A princípio, duros e ásperos calhaus cheios de pontas e
arestas. A água, todavia, passa longa e pacientemente sobre eles. Os anos
sucedem aos anos, e os seixos vão se arredondando, as suas anfractuosidades se
atenuam, toda a pedrinha como que amacia e se torna um pequeno bloco polido,
doce ao contato e à vista. Também as palavras sofrem esta erosão; no seu caso,
da corrente do pensamento”. Não foi o que escrevi no início destas
descompromissadas reflexões?!!!
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do
Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em
equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por
uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de
“Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio
de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49
(edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de
1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página
54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Hábitos, comportamentos, palavras, são minhas paixões, a medida que mudam.
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