Antes de tudo leitor
O leitor é o principal
agente da Literatura. Sem ele, esta atividade seria inútil, redundante, uma
espécie de conversa de doido. Escreveríamos, apenas, para nós mesmos, tendo por
temas o que estamos fartos de conhecer. Caso não conhecêssemos, óbvio, não
escreveríamos a propósito. E se já conhecemos de sobejo o teor do que nos
propomos a escrever, por qual razão o perpetuaríamos em letra de forma se não
houvesse pelo menos uma outra pessoa para ler? Para nos informar do que sabemos
décor e salteado? Não faz sentido. Seria enorme inutilidade. Escrevemos para
que outro alguém leia. Alguém de quem nada conhecemos. Qual seu sexo? Qual sua
cor? E seu estado civil? Que aparência tem? É gordo, magro, alto, baixo,
cabeludo, careca, loiro, moreno, olhos azuis, negros ou castanhos? Não sabemos.
E isso importa?! Importa que essa entidade anônima e sem rosto nos leia e que,
se possível, se torne nosso seguidor fiel, mesmo no anonimato, abstrato, quase
conceitual.
Nós, que temos o hábito
(ou o vício) de escrever, que fazemos da escrita profissão, ou mais que isso,
opção de vida, indestrutível paixão (não raro obsessão), somos, antes de sermos
escritores, leitores. Sem leitura não seríamos nada. Não iríamos a lugar algum.
Não conheceríamos sequer o beabá, as normas elementares do nosso idioma e,
portanto, não saberíamos como utilizar a ferramenta por excelência do nosso
ofício: a palavra. Jorge Luís Borges nos lembra: “Sem leitura não se pode
escrever. Tampouco sem emoção, pois que a literatura não é, certamente, um jogo
de palavras. É muito mais. Eu diria que a literatura existe através da linguagem,
ou melhor, ‘apesar’ da linguagem”.
Somos, portanto, primitivamente
e antes de tudo, leitores. É o que nos possibilita especular, com razoável
margem de acerto, o que esse personagem incógnito, mas fundamental, gostaria de
ler, o que espera de nós. Às vezes acertamos, muitas vezes erramos no diagnóstico,
mas nossa própria experiência funciona como uma espécie de parâmetro, de mapa
do tesouro, de guia, de bússola a nos orientar. Marcel Proust, em “O tempo
redescoberto”, sugere: “...Todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo”. E justifica:
“A obra não passa de uma espécie de instrumento ótico que lhe é oferecido para
lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria, certamente, visto em si
mesmo”. Pois é, quando lemos, estamos lendo a nós mesmos, fazendo uma espécie
de exame de consciência, uma descoberta do que está escondido em recônditos
ciosamente camuflados do subconsciente.
O polêmico, mas
excelente filósofo norte-americano, Ralph Waldo Emerson, com o qual tanto me
identifico, vai além de Proust nessa questão. Garante, em “Sociedade e solidão”
que “é o bom leitor que faz o bom livro; em cada livro, ele encontra trechos
que parecem confidências ou apartes ocultos para qualquer outro e evidentemente
destinados ao seu ouvido; o proveito dos livros depende da sensibilidade do
leitor; a ideia ou paixão mais profunda dorme como numa mina enquanto não é
descoberta por uma mente e um coração afins”.
E quando não
concordamos com as opiniões e conceitos expressados pelo autor, como é que
fica? Afinal, é uma situação até bastante comum. E mais: se o que o escritor
expressou está eivado de erros – e não me refiro aos gramaticais, mas aos conceituais
– ainda assim a leitura é proveitosa e não mera perda de tempo? Entendo que
sim. E Jorge Luís Borges também, a julgar pelo que escreveu no prólogo da
primeira edição do livro “História universal da infâmia”: “O livro pode conter
muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas,
ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de
respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar
sabedoria”.
Reitero, pois, que
nenhum de nós conseguiria ser escritor, mesmo que dos mais primários e obscuros,
se não fosse, antes e acima de tudo, ávido e obsessivo leitor. Está entre meus
projetos literários o de escrever um livro para destacar a importância desse
personagem indispensável da Literatura. Há muitas coisas a dizer a propósito,
mas a tarefa não é tão fácil como possa parecer. Ademais, se conseguir atingir
essa meta, não estarei sendo, sequer, original. O argentino Ricardo Piglia saiu
na frente e escreveu a instigante e criativa obra “O último leitor”. Todavia,
apesar de sua perícia e magistralidade, não esgotou o assunto. Há mil coisas
que ele não citou e que considero importantes.
O fato é que devemos
ler, muito, sempre, fartamente, obsessivamente, apaixonadamente. E se não
tivermos recursos financeiros para adquirir livros, que não nos são fornecidos
de graça e são relativamente caros? Bem, José Saramago também não tinha, mas
acabou dando um jeito. E isso foi decisivo para que se tornasse o primeiro (e
até aqui único) escritor de língua portuguesa a conquistar o cobiçado Prêmio
Nobel de Literatura. Ele confidenciou, em um de seus tantos textos: “Eu fui um
leitor apaixonado. Não havia livros em minha casa, mas costumava ler bastante
nas bibliotecas públicas, especialmente à noite. Lia indiscriminadamente.
Lembro-me de ler a tradução do ‘Paraíso Perdido’ quando tinha 16 anos. Não
havia ninguém que me dissesse o que experimentar a seguir. Por isso tive uma
educação literária anárquica cheia de lacunas, mas com o tempo consegui
organizar uma espécie de visão coerente da literatura, acima de tudo da
literatura francesa”.
Quando algum jovem
talentoso, com evidente potencial de se tornar imortal no mundo das letras caso
desenvolva adequadamente sua vocação (e conte com boa dose de sorte, sem dúvida)
me pergunta o que fazer para se tornar escritor, embora não me sinta habilitado
a aconselhar quem quer que seja, recomendo, convicto e sem titubear: LEIA! Faça-o com o espírito aberto e tente
estabelecer empatia com o autor. E nem precisa ler bem. Apenas LEIA. Piglia
traz uma observação pitoresca a propósito: “Um leitor também é aquele que lê
mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o
que tem melhor visão lê melhor”. Bem ou mal, todavia, LEIA. Esta é a única
chave para abrir a porta deste conciliábulo dos obcecados pelas letras, desta
confraria de malditos, caso você teime em querer adentrar ao seu misterioso interior.
Boa leitura.
O Editor
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.
Sempre se manda ler, mas como formar um escritor? O que aconselhar a quem queria ser escritor?
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