Mais que irmãos*
** Por Urariano Mota
Trecho do romance ”O
filho renegado de Deus” publicado na revista Ciência e Cultura, da SBPC
Os seus olhos de sede
bebem aquela cozinhazinha, da casinha, da salinha, do casalzinho onde está a
mesinha para dois baixinhos gêmeos. Os dois reflexos na sua determinação. Ele
soube depois, Maciel tão macho para Maria, tão pouco macho para outros homens, para
o trabalho, para a vida. Sempre a olhar para baixo, para o chão, nas horas de
enfrentamento. E com isso construindo uma sobrevivência custosa e repleta de
humilhação, mas sobrevivência, porque de algum modo as pessoas têm que
sobreviver, "não é? não é?" Maciel sempre falará na velhice, a pular
os momentos dramáticos de vexame e submissão. Maria, no entanto, o seu outro
lado no espelho, na medida do possível fala por ele. Isso quer dizer, Maria
fala no limite da sua condição aprisionada de mulher, condição a que se somam
outras, tidas como insultos: pobre e gorda, de coração valente.
Na do seu destino
naquelas horas, Maria fala como Maciel deve agir. Isso não é imagem ou frase
corrida. O menino ouviu, muitas vezes, que depois de escutar e escutar as queixas
de Maciel, sua mãe assim começava, como resposta:
— Eu, se fosse você,
agia assim.
E delineava, na medida
do seu entendimento, um programa de ação, como gostaria de dizer o Jimeralto
maduro, nos encontros clandestinos de militância. "Eu, se fosse você, agia
assim". Parecia então lhe dizer Maria, e Jimeralto compreendeu passados
muitos e muitos dias no outro século, que o programa de Maria se filtrava em
uma única frase: "Maciel, seja homem". E nisso a irmã gêmea, espelho,
não fazia a Maciel qualquer recriminação ao lado fêmea dele, seu reflexo. Ela
queria apenas dizer, "Maciel, não se deixe humilhar, Maciel, reaja,
Maciel, mate, mate se não puder agir de outra maneira. Se for preciso, mate
para ser um homem, Maciel. Mate como o nosso outro irmão. Mate para não se
matar". E tio Maciel, o espelho, baixava os olhos enquanto Maria falava.
Jimeralto não sabia, demorou muito a saber, demorou muito até o dia da
meditação sobre uma verdade que sua mãe já lhe ensinara, mas o partido nunca
aceitou, vale dizer, o sentido magnífico do que ele descobriu ao refletir sobre
Maria: falar é um modo de agir. Falar é um programa de ação. Em vez do fala,
fala, falador, fala falácia palavras não mais que palavras, Maria lhe mostrou
que falar era um plano de futuro. Porque nela, pessoa nada ilustrada, assim
como em todas as pessoas de escassa ou nenhuma leitura, os verbos no futuro
tinham, têm o dom da profecia. Eram, são o momento anterior de uma
transformação em atos. Assim como Deus manifestou "faça-se a luz", e
a luz se fez, quando ela dizia, para as tarefas da vida, "vou fazer",
ela de fato anunciava a vinda da luz, não tão imediata quanto para Deus, mas
mediata, pois a luz chegava dias, meses ou anos depois. "Mate para não se
matar", ela jamais disse. Mas havia um ambiente, um cenário a envolver
Maciel, que assim o exigia, enquanto ele diante disso respondia com um
encolhimento.
Ao refletir sobre esse
encolhimento do tio, Jimeralto passou a ter um entendimento mais largo, que se
dirigia para a generosidade, e de tal modo que pulava a repulsa àquele olhar de
malicioso convite que a tudo e a todos abarcava. Ele via como se fosse hoje,
agora, a reação de Maciel frente aos berros, descomposturas do pai, marido de
Maria. Tão pequeno ele era, Jimeralto, tão pequeno ele era, Maciel, ante a voz
trovejante de Filadelfo, o negro que odiava homossexuais. Maciel se urinava de
pavor diante do poderoso. Que dor no coração lhe dava essa lembrança, ao
reeceber a consciência de que Maciel, homem feito, se urinara diante do pai, um
negro macho repleto de ressentimento. Então Maciel baixou os olhos, desceu os
longos cílios para a terra, para o chão, e se molhou nas calças, as calças que,
segundo Filadelfo, para Maciel eram inúteis. Essas coisas Jimeralto recordava
como uma passagem para a cruz, quando não a própria cruz, porque não podia ser
feliz com essa carga, com a qual teria que atravessar o Gólgota. E Filadelfo
gritara:
— Maria, esse teu
irmão baba na cama!
E a cama era um leito
de lona, sobre paus cruzados em X. Maciel não tinha onde dormir, não tinha
mulher, casa ou casamento, ali estava na qualidade precária de irmão de Maria.
Dormindo de esmola, vale dizer. E Maria respondera:
— Que é que tem? Quem
limpa sou eu.
Para quê Maria
respondeu dessa maneira? Filadelfo entrou num processo irreversível de raiva,
que foi crescendo:
— Não é sua obrigação
limpar sujeira de irmão. A sua obrigação é com quem lhe dá de comer. A sua
obrigação é pra quem você pariu.
Essas coisas se
passavam diante de Maciel, que apenas olhava. Pálido, ele estremecia no piso de
cimento puro da sala, enquanto se mijava pela fúria que tomava conta de
Filadelfo. E Filadelfo percebia, não lhe passava sem atenção o terror no
cunhado, e por isso mais se arrojava na altura da raiva:
— Quem já viu homem
babar feito menino? Isso é falta de chupeta. Isso é falta de chupeta mais
grossa.
A isso inflamada,
vermelha, de raiva e vergonha pelo que sabia ter sido atingida uma essência do
irmão, Maria lançou um copo no marido. Que se esquivou, mas viu os estilhaços
de vidro contra a parede. Ao que Filadelfo mais furioso, sabedor do que mais a
ferira, trovejou para Maciel:
— Está vendo o que
você fez, babão? Fora! Fora!
E Maria, chorando,
partiu para arrumar os próprios trapos, que chamava de roupas:
— Onde não cabe meu
irmão, não me cabe.
— Está vendo, babão?
Quer me tomar da sua irmã?
Então Maciel, mijado,
apenas sussurrou baixinho para Maria, num fio de fala:
— O enjeitado sou eu,
Maria. Não destrua o seu casamento. Vou-me embora.
* Do romance O filho
renegado de Deus, publicado pela Bertrand Brasil, 2013.
** Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Uma boa saída que dignificou Maciel.
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