O último trabalho de Eduardo
* Por
José Ribamar Bessa Freire
A morte de um aluno
jovem é, para o professor que a ele sobrevive, como a morte de um filho: uma
inversão antinatural, uma cilada do destino, uma emboscada da história. Assim
como existe pai órfão de seu filho, existe professor órfão de seu aluno. É o
sentimento que compartilho com alguns colegas da Universidade Federal de Santa
Catarina diante da morte de um dos nossos alunos, o guarani Eduardo da Silva
Kuaray, do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata
Atlântica. Ele foi vítima de um acidente fatal de carro neste 1° de novembro
numa estrada do município de Imarui (SC).
Eduardo, filho caçula
de Maria e Augusto da Silva, era quase um menino, apesar de ser pai de três
filhos e de ter sido cacique da Aldeia Tekoa Marangatu. Fui seu professor em
todas as etapas do Curso de Magistério Kuaa M´boe, que começou em novembro de
2003 no município Celso Ramos (SC), passou por Faxinal do Céu (PR) e terminou
em São Francisco de Paula (RS) em maio de 2010. Durante esse tempo, encontrei
Eduardo duas vezes cada ano, quando convivia as 40 horas da disciplina
ministrada em cada etapa. Aprendi muito com ele e com seus colegas.
No primeiro trabalho de
avaliação, fizemos uma espécie de guia de fontes de documentos orais.
Solicitamos aos alunos que entrevistassem os velhos sábios guarani e
registrassem os saberes locais. Eduardo me apresentou narrativas coletadas com
dona Maria Guimarães, do Tekoa Marangatu, reconstruindo a trajetória de vida
dela.
Depois, na sua
monografia de conclusão do curso de magistério, em 2010, intitulada
"Enigmas da natureza na visão dos Guarani", Eduardo trabalhou a
relação com o espírito dono da água, com as árvores, com os rios, com os
animais, enfim com a natureza cuidada por Nhanderu. Ouviu os Tcheramoi e
registrou em língua guarani as propriedades das ervas medicinais e de remédios
caseiros feitos com gorduras de animais. Pesquisou também em livros e revistas
especializadas as mudanças climáticas e o aquecimento global e concluiu
mostrando como ele ensinava às crianças, que eram seus alunos, o que havia
aprendido. Na monografia, descreve os procedimentos usados, a dificuldade de
acesso ao computador - só tinha um para toda a aldeia - e como só no final
conseguiu adquirir uma máquina fotográfica.
Finalmente, ele se
formou como professor bilíngue neste Curso de Nível Médio. Desta forma, estava
habilitado para cursar na universidade a Licenciatura Intercultural Indígena do
Sul da Mata Atlântica, o que fez. Lá, na UFSC, uma vez mais reencontrei o nosso
Eduardo, que iria se formar agora em abril de 2015, em companhia de outros
acadêmicos Guarani, Xokleng e Kaingang. Na etapa presencial, ministrei para
eles dois módulos da disciplina Literatura - análise e interpretação de textos
- que começou exatamente há um ano, nos primeiros dias de novembro de 2013 e
prosseguiu em abril de 2014.
Entre outros, um dos
objetivos da disciplina na universidade era refletir sobre as diferenças entre
cultura oral e cultura escrita e sobre o processo de construção da memória
social. Os dois textos que mais interessaram aos alunos foi o I-Juca Pirama, de
Gonçalves Dias e a Nueva Cronica y Buen Gobierno, escrita no final do século
XVI pelo índio andino Felipe Guamán Poma de Ayala.
Apresentei aos alunos
uma versão fac-simile da Nueva Cronica publicada em 1936 pelo Instituto de
Etnologia de Paris, com mais de mil páginas e quase 400 desenhos relatando a
resistência dos índios. Os alunos folhearam o livro, mas trabalhamos
diretamente com um catálogo em português intitulado AS PRIMEIRAS IMAGENS DA
CONQUISTA, com 30 desenhos de Poma de Ayala selecionados por nós para exposição
realizada em 1992 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro por ocasião do V
Centenário do desembarque de Colombo na América.
Foi uma experiência
singular. Na primeira aula, dei informações sobre o autor, sobre a obra e
começamos a trabalhar cada um dos 30 desenhos. A partir daí, as aulas
caminharam sozinhas, porque os desenhos falavam por si mesmos e remetiam
imediatamente para um debate sobre a história de cada uma das três culturas ali
representadas: agricultura e roças comunitárias, organização social, relação
com a igreja, escola, castigos físicos, ususrpação das terras, luta,
resistência. Está tudo lá.
O nosso ponto de
partida foi: o que um escritor indígena andino do século XVI, que atravessa o
século XVII caminhando por toda a serra andina, chorando - para citar suas
próprias palavras - tem a ver com outros espaços, outras culturas e outras
temporalidades? Como índios no Brasil, que vivem na mata atlântica leem hoje
essa crônica andina, escrita por um índio bilingue, falante nativo do quêchua,
que aprendeu o espanhol como segunda lingua e escreve em quechuañol?
As atividades se
centraram no debate sobre os desenhos, apoiados em pequenos trechos de textos
em sua versão original, com uma versão em português. A partir da primeira
leitura, cada participante escolhia uma lâmina para comentar e justificar sua
opção. Observamos a relativa desenvoltura com que os alunos Guarani, Xokleng e
Kaingang compuseram sentidos, sem manifestar qualquer tipo de dificuldade na
compreensão de textos e imagens produzidos por um autor como Poma considerado
"confuso" pelos historiadores não indígenas.
- Se você fizesse hoje
um desenho sobre os índios no Brasil atual para alguém que vai vê-lo daqui a
400 anos, o que é que voce gostaria de mostrar? Faça o desenho - foi o pedido que
fizemos. Os desenhos serão publicados.
Agora, no ultimo 31 de
outubro, com três alunos - os Guarani Joana Mongelo e Teodoro Alves e o Xokleng
Marcondes Nambla - participamos em Foz
de Iguaçu (PR) de uma mesa no Colóquio sobre Felipe Poma de Ayala, organizado
pela UNILA - Universidade Federal de Integração Latinoamericana e cada um falou
sobre a atualidade do cronista andino, com comentários realizados pelos
professores da UNILA Clovis Brighenti, Giane Lessa e Mário Ramão Villaba.
A melhor homenagem que
podemos fazer é publicar aqui resumo do último trabalho de Eduardo, de quem já
sentimos saudades. É uma tentativa de enganar a morte, de fazer com que ele
fique um pouco mais de tempo com a gente. De qualquer forma, em meados de abril
de 2015, Eduardo estará certamente entre nós na formatura da turma. Reproduzo
abaixo:
Felipe Guaman Poma de
Ayala foi um índio peruano que relatou a história de seu povo nas mãos dos
espanhóis a partir do que viu, aprendeu a ler e escrever e fez 398 desenhos que
nos ajudam a compreender o que de fato
ocorreu naquela época. Escolhi o desenho da página 29, que mostra o avô do
autor sendo queimado vivo.
O desenho dele é muito
bem trabalhado e consegue mostrar as expressões do que realmente estava
acontecendo, choro, dor e sofrimento dos torturados. Ele fala dos métodos
violentos usados pelos espanhóis para ficar com as riquezas dos índios.
A imagem que escolhi
passa uma mensagem muito sofrida de índios que estavam sendo queimados vivos. E
isso mostra que para se apossar das riquezas das terras indígenas eles matavam
a quem ameaçavam de impedir que peguem as riquezas que eles queriam como ouros
e pratas.
Hoje, essa imagem
mostra que naquela época os conquistadores que se diziam ser autoridades e
detentores de direitos até para mandar nos índios já tinham nos pensamentos que
quando os indígenas tinham mais direitos sobre suas terras e suas riquezas eles
matavam. E isso continua até hoje para as lideranças que lutam pelos seus
direitos sobre as demarcações de suas terras.
Que Nhanderu acolha
Eduardo em seu seio e traga conforto para os vivos, os familiares, os colegas
da Licenciatura, seus professores e todas as pessoas do Tekoha. Estamos todos
órfãos de Eduardo. Confesso que tínhamos ainda muito a aprender com ele. O
nosso adeus dolorido a alguém especial, que com sua despedida repetina e
trágica nos lembra a fragilidade da vida.
*
Jornalista e historiador
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