Velha Índia Aíu (Xokleng), abril de 1997
Xokleng e a memória perdida: História que é melhor não contar
* Por
Clóvis Antonio Brighenti
Neste mês de setembro
completou exatos 100 anos que um grupo de indígenas Xokleng resolveu aceitar a
proposta de paz proposta pelo Estado brasileiro. Trata-se do grupo Laklãnõ que
atualmente vive no alto vale do Itajaí. Outros grupos Xokleng optaram em manterem-se
livres em seu território e por esse motivo não foram “protegidos” pelo Estado.
Massacrados por bugreiros, colonos e fazendeiros, foram dizimados, restou um
pequeno grupo em Porto União-SC.
Muito se tem enaltecido
funcionários do Estado brasileiro e o próprio Estado pela relação estabelecida
no momento da “pacificação” e pela atenção dispensada ao longo de 70 anos. A
exaltação é, no geral, narrada por quem se beneficiou do processo do ponto de
vista econômico ou social. É recomendável uma revisão bibliográfica a partir do
ponto de vista indígena, um recontar e refazer da história para que a paz seja
de fato estabelecida e que de alguma maneira possa também os indígenas possam
ser beneficiados. Ocorre que 100 anos é uma pequena fração de uma história
milenar, que remonta a mais de quatro mil anos, já datada pela ciência moderna,
certamente os mais cruéis e violentos.
As relações que
marcaram os indígenas Xokleng com os não indígenas no século XX não podem ser
contadas em poucas linhas, tampouco filtradas pela amnésia intencional daqueles
que sabem de suas responsabilidades quanto a violência impetrada e preferem o
esquecimento.
A alusão aos 100 anos
de contato poderia ser marcada pela lembrança de uma nova relação amistosa
estabelecida entre indígenas e sociedade regional. No entanto, as marcas da
violência continuam porque a história não está concluída, a pacificação está
inconclusa. Segundo depoimento de indígenas o “contato foi praticamente
forçado, porque, ou os indígenas aceitavam o contato ou seriam todos dizimados!
Então, a luta é de 100 anos de história, e hoje ainda existe a arma que nos
fere, e essas arma é a caneta, aquela caneta que assina as leis, e às vezes ela
corta os nossos direitos e aí eu digo pra toda a nossa juventude, que nós temos
um caminho pra se defender, o caminho da educação, o caminho de aprendizado e
do aprimoramento naquilo que fazemos para que possamos conhecer as leis que nos
protege”.
O Estado brasileiro,
envergonhado que estava diante das atrocidades que eram cometidas contra
indígenas, criou em 1910, o Serviço de Proteção aos Indígenas (SPI). Uma
agência de princípios humanitários e disposta a inovar, criar novas relações
com os povos indígenas. Uma das primeiras atribuições desse serviço foi
pacificar – nome cunhado da literatura de guerra que significa estabelecer a
paz. Partia-se de um pressuposto que havia uma guerra declarada, na visão das
companhias colonizadoras os Xokleng fariam guerra contra os não indígenas, na
perspectiva indígena era exatamente o contrário, ou seja, as frentes de
colonização invadiram o território indígena e declararam guerra.
O Estado, personificado
no SPI, conferiu a responsabilidade de mediar a paz. Todavia, o SPI
representava uma das partes, não cabia a ele a mediação, a ele cabia sim retirar
os invasores e impedir que continuassem invadindo, fez justamente o contrário,
legalizou a invasão e reduziu o território do povo invadido a uma minúscula
fração do mesmo. E fez mais, criou uma estrutura administrativa, política e
ideológica para manter os indígenas confinados na reserva. A pacificação em seu
fim último significou a proteção aos invasores e o reconhecimento das terras
roubadas como legítimas. Seu objetivo não era a proteção indígena, ao
contrário, era proteger a sociedade regional de uma pressuposta agressão
indígena. Agrava-se o fato da legislação
brasileira, inclusive a Lei 601 de 1850, época do Império, reconhecer o direito
indígena sobre seus territórios, mas depois agir contra a lei, leiloando as
terras indígenas ou os expulsando.
A paz que nunca chegou
A paz proposta pelo SPI
aos Xokleng em 1914 nunca se materializou, ao contrário, a violência continuou,
agora de maneira institucional. O século 20 pode ser caracterizado como um dos
mais violentos contra os povos indígenas no Brasil justamente porque a prática
era institucionalizada, era oficializada e legalmente amparada pelo regime
tutelar a que eram submetidos os indígenas. A tutela era a extensão da guerra,
era a impossibilidade de reação, o sentido mais desumano que se pode aplicar a
um povo, tolher a liberdade e impedir que reajam.
Assim se processou por
longos 70 anos. Impedidos de falar a língua e manifestar-se culturalmente eram
submetidos a severas jornadas de trabalho imposto como disciplina e castigo.
Diante do poder opressor do Estado nada podiam.
As poucas terras
reservadas como acordo de pacificação, foram sendo reduzidas, dos cerca de 40
mil hectares reservados no início do século restou aos Xokleng menos de 15 mil.
Acordos, negociatas e abusos foram marcas no processo de roubo das terras. Em
1963, uma invasão é organizada por empresários regionais com centenas de
famílias camponesas para roubar os últimos 15 mil hectares. Sozinho e sem
apoio, as lideranças indígenas se deslocaram a pé até capital do estado para denunciar
e cobrar uma solução. Apenas em 1998, a revisão dos limites com a possível
retirada dos invasores começa a ter um fim. Porém o processo encontra-se em
julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) devido a uma Ação Civil Ordinária
(ACO 1100) impetrada pelo estado de Santa Catarina, empresas madeireiras e
outros ocupantes.
“Vejam 100 anos se
passou, nós somos um povo forte, e com esse frio todo e nos estamos aqui. Nós
temos algumas leis que defende a comunidade indígena. Essas conquistas foram
por causa das lideranças anteriores, e também pelas nossas forças. Porque não
pense, que tudo o que temos hoje dentro na terra indígena, foi oferecido pra
nós, fomos buscar, nós conquistamos, nós temos, casa, posto de saúde, mas não
foi ninguém que ofereceu pra nós, fomos nós que conquistamos!”
Outra variante da
prática abusiva do SPI foi considerar as terras Xokleng como de sua
propriedade. Durante os governos militares o órgão indigenista autorizou a
construção de uma barragem para contenção de cheias no vale do Itajaí, protegendo as cidades de Ibirama,
Indaial, Blumenau e Gaspar das enchentes e deixando aos indígenas um lago
lamacento e podre. Mais de mil hectares de terras na várzea do rio ficaram submersas,
as melhores e justamente onde se encontravam suas aldeias. Até hoje não foram
devidamente indenizados e sofrem com os acessos. Basta um pouco de chuva para a
escola e aldeias ficarem ilhadas. Uma aldeia está condenada erosão provada pela
variação do nível da água
Herói pacificador para
alguns vilão para outros
A sociedade regional
reconhece Eduardo de Lima e Silva Hoerhan como o herói pacificador, aquele que
teve a audácia de estabelecer o contato e conviver com esse povo por
praticamente meio século. Foi ele quem garantiu a tranquilidade para a
sociedade regional, que impediu aos indígenas circularem por seu território
tradicional, também foi o responsável por introduzir os valores e costumes das
sociedades ocidentais no seio esse povo.
No entanto, na memória
Xokleng não há heroísmo. Inclusive questionam o fato dos Kaingang terem sido
ignorados ao longo da história, quando eles foram os protagonistas do contato,
já que eles conseguiam se comunicar com os Xokleng na língua materna.
As atrocidades
cometidas pelo chefe de posto seguem na memória do povo conforme relato de
indígenas que afirmam que, em alguns momentos o Eduardo ajudou os índios, mas a
ajuda dele foi muito menor, do que ele massacrou os índios. “Meu avô trabalhava
para o Eduardo, e contava o que o ele fazia com os índios, um dia Eduardo
chamou meu avô, e como ele se demorou um pouco e quando ele estava chegando, o
Eduardo mandou ele parar, e mandou ele
ficar ali, e o utilizou como um alvo, e começou a dar vários tiros, e um tiro acertou a orelha do meu avô,
que ficou sem um pedaço da orelha, então meu avô contava que o Eduardo disse
pra ele: eu só fiz isso pra treinar a minha arma nova.Então hoje nos não
contamos pro nossos alunos, que o Eduardo foi um herói, porque ele judiou
muitos dos índios, massacrou muito os índios, porque a história que nós ouvia
do meu avô, meu tio sempre contou também
e outro mais velho também contava, que foi muito sofrido”, tal como narra um
dos indígenas.
Para concluir um
processo de paz
A paz é resultado da
reconciliação. A reconciliação não se faz pelo esquecimento. A eliminação da
prática da tutela e a superação do modelo opressor do estado militar na década
de 1980 significaram importante passo na construção da pacificação. No entanto
a paz ainda é um projeto utópico.
A paz é resultado da reconciliação. A reconciliação
não se faz pelo esquecimento. A eliminação da prática da tutela e a superação
do modelo opressor do estado militar na década de 1980 significaram importante
passo na construção da pacificação. No entanto, a paz ainda é um projeto
utópico.
A devolução das terras e a reparação dos danos
causados pela barragem norte poderão significar um importante passo rumo a
consolidação do processo de pacificação. Nesse caso ela deverá ocorrer de
acordo com o pensamento indígena, ou seja, os não indígenas devem ser
pacificidades.
O recontar da história a partir da memória
indígena, processo que a escola tem relevante papel pelo poder de incidir em
crianças e jovens, poderá significar um importante um elemento de revisão dos
registros históricos que enaltecem vilões como heróis e falseiam os dados e
informações para evitar que a memória cumpra com seu papel de mobilizadora das
sociedades. Enquanto continuam lutando para melhorar a educação, para ter
profissionais indígenas na comunidade, para que os seus filhos/as e netos/as
possam mais cem anos ter aquilo que eles tanto desejam que é educação, saúde e
a terra.
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*Membro
do Cimi Sul, doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Prof. da Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Unila.
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