sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Passado


* Por Rodrigo Ramazzini9

Em uma cela de uma Delegacia de Polícia.
- Ô meu Deus, o que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?
- Preso, Márcio? Preso?
- É... Preso... Homicídio... Duplo homicídio...
- Culpado? Ou podes alegar inocência? Advogado especialista neste assunto tem aos montes por aí. Só arranjar um bom!
- Sou culpado, sim! Matei os dois mesmo. Não há como negar... Onde eu estava com a cabeça?
- Sei... E tudo por uma vingança?
- É... Vingança... Vingança que está me levando ao fim... Acabei como homem! Decretei o meu fim como ser humano! Se é que posso ser considerado um depois de hoje...
- O pior é que nem cara de criminoso tem!
- Pois é... Não é preciso ter cara de criminoso. Mas o instinto de um...
- E agora?
- Não sei! Não sei! Só sei que estou causando um sofrimento enorme a mim e a minha família...
- Pois é...
- E na família dos mortos...
- Também!
- O que foi que eu fiz, meu Deus?
- Arrependido?
- Muito!
- Agora, não adianta questionar o que fizestes...
- É...
- Até porque a resposta é simples...
- Simples? Como simples?
- Sim! Simples... Deixastes o teu passado definir o futuro...
- Como assim?
- É meu amigo... O passado é um senhor sabido. Ele pode influenciar de duas maneiras em nossa vida... Digo a nossa vida de hoje... O agora... Este instante...
- Duas, é? Hum...
- É... O hoje nada mais é do que o resultado das nossas escolhas do passado. Isso vale para o bem ou para o mal...
- Isso eu sei! E é um tanto quanto óbvia... E a segunda?
- Não é tão óbvia assim porque se fosse nós daríamos maior atenção ao presente...
- Sei... Sei... É... Está bem... E outra?
- A outra é quando vivemos presos em função do passado. Com duas vertentes: a primeira, quando tentamos a todo o custo fazer com que situações que ocorreram dentro de um contexto histórico, social, familiar, festivo e entre outros, voltem a acontecer em um presente totalmente diferente... E insistimos e acreditamos que ressuscitar tais situações “museológicas” é que faz a vida ter sentido... Mesmo que não faça sentido nenhum! Viramos presos de nossas crenças!
- Hum... Entendi... E a segunda vertente?
- É onde tu te encaixas... Ela tem uma sutil variação da primeira.
- Eu? Como?
- É quando conduzimos as nossas vidas de forma obcecada por uma ideia ou decisão do passado sem refletir sobre a realidade, seus efeitos e consequências...
- E o que eu tenho a ver com isso?
- Tudo a ver! Vamos ao fato... Quando a Maria Alice te largou há cinco anos para ficar com o Mauro. O que foi que pensastes?
- Pensei... Pensei... Pensei em me vingar!
- Então... E não vivestes em função disso nestes últimos cinco anos? Não fizestes disso o combustível e o sentido da tua vida durante todo este tempo? Não pensavas só em vingança, vingança, vingança?
- É... Eu... Eu...
- Pois é... Consegues ver para onde isso te levou agora? O quão prejudicial foi viver do passado?
- É que...
- Pense em quantas coisas deixastes de aproveitar por estar com esta ideia fixa na cabeça... Por não se permitir desapegar dessa fixação... Desapegar desse passado...
- Mas...
- Mas nada! O teu passado acaba de ditar o teu futuro, Márcio!
- É... Agora... Agora eu consigo ver tudo isso de forma clara!
- Pois é... Só agora...
- Deixei de viver o presente para sobreviver do passado. Como eu fui burro, meu Deus! Como eu deixei acontecer isso, hein?
- Faltou refletir sobre a própria vida... De usar uma dose extra de razão... De deixar de irrigar diariamente o ódio no coração...
- É... Agora eu consigo ver tudo isso...
- Pois é...
- Infelizmente, não posso voltar atrás e refazer tudo de novo...
- Não mesmo! Também não podes reclamar da falta de oportunidades de realizar tais reflexões...
- É... É... Por que não pensei nisso antes, meu Deus?
- É... São as circunstâncias que provocam as reflexões e trazem a maturidade.
- Verdade! É o que realmente me parece agora...
- Pois é...
- Mas, sei lá! Estranho... Contraditoriamente, mesmo preso, agora, uma parte de mim carrega a sensação de arrependimento e que tenho que pagar pelo que fiz... Sofrimento mesmo... Mas outra parte carrega a sensação de leveza, liberdade e realização! E não é pelo fato de ter me vingado... Acho que é pela compreensão e motivações do crime... Parece que acabo de descobrir uma página nova da minha história de vida.
- É... Eu sei, Márcio!
- Sabes?
- Sim! Eu sei. Eu sou a sua consciência!



* Jornalista e contista gaúcho

Um comentário:

  1. Muito estrago por um momento fugaz de prazer por ter levado a cabo uma vingança.

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