Quintino Bocaiuva
* Por
Adelino Fontoura
Uma vez escrito este
nome, que é um símbolo, porque é uma síntese, sinto-me fortemente impelido pelo
irresistível e poderoso impulso da verdade a adicionar-lhe, como
particularidade complementar, esta frase: um homem de bem.
O leitor fluminense
deve ter encontrado provavelmente na rua, algumas vezes, um indivíduo magro,
franzino, de fisionomia melancólica e triste, rosto aquilino e agudo, fronte
alta e escampada, a cabeça resolutamente levantada, passos firmes e compassados,
caminhando sempre retilineamente como quem marcha para um destino; concentrado,
pensativo, entregue obstinadamente aos profundos encantos da meditação. Pois
bem: esse perfil cavalheiresco e leal, essa criatura romântica e silenciosa é
Quintino Bocaiúva. Habituei-me, desde muito criança, a admirar e a respeitar
este nome. E esse respeito e essa admiração que não eram, a esse tempo, mais do
que a expressão convicta do meu entusiasmo pelo talento, são hoje, no meu
espírito, a ratificação deste mesmo sentimento, mais largamente desenvolvido e
mais solidamente baseado.
Não sou da intimidade
de Quintino, e, pessoalmente, apenas o conheço de vista. Quanto ao homem
público, porém, debaixo do seu duplo aspecto de jornalista e de político;
quanto à personalidade distintamente acentuada do lutador visto aí, no duro e
áspero conflito da vida pública, Quintino Bocaiúva é simplesmente o tipo
exemplar da retidão, afrontando, cheio de impassível serenidade, todos os
trabalhos e todo os obstáculos; tem sentido, como poucos, o contato áspero e
inclemente das grandes contrariedades.
Entretanto, no meio
desta peleja acerba e desfibrante, ele tem conservado inalteravelmente a
atitude calma, a altivez intransigente de um forte, sem ter sucumbido, sem ter
resvalado convenientemente, como tantos outros, para a serenidade burguesa e
pacata, que resulta de um aviltamento cauteloso ou de uma apostasia oportuna.
Na sociedade brasileira contemporânea, este fato, por si só, constituiu a mais
austera lição e o mais brilhante exemplo. Quintino Bocaiúva, apesar da firmeza
catoniana do seu temperamento, não é um homem que impressione pelo seu aspecto
severo e duro. Ao contrário: ele impressiona pela singeleza e pela bondade, que
derramam na sua fisionomia os tons brandos, docilmente expressivos de um vago
misticismo ideal.
Cativam-me
extraordinariamente as anedotas biográficas dos grandes homens, as
originalidades e os "tiques" dos espíritos superiores. Por isso,
quando pela observação e pelo estudo compreendi que Quintino era um original,
admirei-o com mais ardor e com mais entusiasmo. E, para dar uma ideia exata e
precisa da originalidade de Quintino, já que aludi a isso, eu recordarei que
ele nunca foi ministro, nem deputado, nem vereador, nem membro do Instituto
Histórico.
Não tem passado de um
jornalista, o que, na opinião pitoresca e fútil do Sr. Martinho Campos, é uma
ocupação reles, indigna, prosaica, chata, de mau gosto. Felizmente - e isso
consola - este ministro, eruditamente arrancado pelo Imperador das profundezas
da paleontologia pátria, sabe experimentalmente, porque tem sentido que o
redator do "Globo" no seu posto de honra é uma força tanto mais
respeitável e temida, quanto é robustecida fortemente pelo sentimento de honra,
da justiça e do dever.
Quintino é um homem singularmente
distraído. Vive constantemente recolhido, como um eremita, dentro do seu
"eu". Uma ocasião, - e este episódio é bastante expressivo - em um
bonde de Botafogo, iam sentados no mesmo banco, na frente, juntos, em honesta
camaradagem: Gusmão Lobo, Joaquim Serra e Quintino Bocaiúva. Em um dos bancos
posteriores do veículo ia igualmente sentado um rapaz, cuja descrição
fisionômica, os raros que porventura me conhecem dispensam, perfeitamente: era
eu.
Levava os olhos
sofregamente cravados naquela trípode de titãs, contemplando, cheio de
interesse e de curiosidade, todos os movimentos particulares de cada um. A
conversa tinha por objeto, cuido, um fato político da atualidade. Gusmão Lobo,
conceituoso e grave, visivelmente interessado pelo assunto, argumentava com
aquela fluência corretamente acadêmica que todos lhe reconhecem.
Joaquim Serra, o
ridente e espirituoso folhetinista, com as cintilações pirotécnicas da sua
"verve", ponteava a questão de pequenas alfinetadas incisivas e
hilariantes. Quintino, entretanto, sentado entre os dois, não dizia palavra. Ia
mudo, calado, numa profunda abstração mental, afagando maquinalmente a barba,
com o olhar esquecido no espaço. O seu cacoete particular, aquele movimento
rápido do queixo, fazia pensar que ele estava ruminando silenciosamente alguma
ideia.
Quintino costuma ir às
vezes ao bilhar, dar desenvolvimento aos músculos. Por muito que ele carambole,
estou convictamente persuadido que Faure Nocolay podia dar-lhe, em uma partida
de cem - noventa e nove de partido. No jornalismo, porém, ele joga taco a taco
com os mais notáveis colegas. E nunca perde.
(A Gazetinha, de
29-30-5-1882.)
*
Escritor, membro da Academi8a Brasileira de Letras
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