A política entre a utopia e a realidade
* Por
Leonardo Boff
Antes de abordarmos,
sucintamente, a questão complexa da política faz-se mister distinguir, como já
fizemos em artigo anterior, a política com P maiúsculo, que é a busca comum do
bem comum. Dela todos os cidadãos participam. Existe ainda a política com p
minúsculo, que consiste na política partidária, que como a palavra sugere, é
parte e não o todo. São os agrupamentos políticos com ideologia e projeto (é o
que mais nos falta no Brasil) que buscam o poder de Estado para a partir dele e
de seus aparelhos governarem o
município, os estados e a Federação.
Impota ainda
conscientizar o fato de que a política, mais que qualquer outra realidade,
participa da ambiguidade inerente à condição humana que nos faz simultaneamente
dementes e sapientes, sim-bólicos e dia-bólicos, numa palavra, nos revela
súmulas intrincadas de contradições. Por isso, por um lado, dizem os papas, a
política é a mais alta forma do amor e, por outro, contém deformações
lamentáveis como o patrimonialismo e a corrupção. Rubem Alves deixou escrito:
“A política como missão é a melhor das
virtudes; como profissão é a mais vil”. Dai viver a política em permanente
crise. A nossa é de baixa intensidade, pois o povo não se sente representado
pelos parlamentares, muitos deles vivendo de negociatas e de aproveitamento dos
bens públicos. Mas ela pode sempre melhorar e transformar-se, segundo o ideário
dos mestres Norberto Bobbio e Boaventura de Souza Santos, num valor universal a
ser vivido em todas as instâncias, da família, dos sindicatos até no centro do
poder. O ideal é que cheguemos a uma democracia sem fim, um projeto sempre
inacabado porque sempre perfectível.
Não secundamos um
pragmatismo preguiçoso, sem sonhos e destituído de vontade de aperfeiçoamento.
Infelizmente, esta é a tendência dominante, particularmente no quadro da
pós-modernidade, para a qual qualquer coisa vale (anything goes), ou só vale o
que está na moda. E está contaminando os jovens.
Entretanto, uma pessoa
ou uma sociedade que já não sonha e que não se orienta por utopias, escolheu o
caminhou de sua decadência e de seu desaparecimento. Sem utopia não se alimenta
a esperança. Sem esperança não há mais razões para viver, e o desfecho fatal é
a autodestruição. Ela desempenha função insubstituível, pois relativiza as
realizações históricas concretas e mantém o processo sempre aberto a novas
incorporações. Numa palavra, a utopia nos faz andar. Jamais alcançaremos as
estrelas. Mas que seriam nossas noites sem elas? São elas que espantam os
fantasmas da escuridão e nos enchem de reverência face à majestade de um céu
estrelado. Porque temos estrelas, não
tememos a escuridão.
Importa distribuir os
poderes e realizar a busca comum do bem comum para todos, sem privilégios e
discriminações
Precisamos, portanto,
de uma utopia para a política, para que desempenhe a função pela qual existe: organizar
a sociedade, montar um Estado, distribuir os poderes e realizar a busca comum
do bem comum para todos, sem privilégios e discriminações. Isso vale tanto para
a Política com P maiúsculo quanto para a políitica com p minúsculo. Ambas
precisam incorporar a ética do bem comum, da responsabilidade coletiva, da
transparência e da retidão em todos os negócios onde estão envolvidos os
poderes públicos.
Quando confrontamos a
política realmente existente e a utopia da política, notamos imensas
contradições. Há um constrangimento poderoso que pesa sobre a política: o fato
de a política hoje estar submetida à
economia e ao mercado que se regem por uma feroz competição deixando totalmente
à margem a cooperação e os valores da solidariedade, fundamentais para uma
convivência civilizada. Isso faz com que os valores não materiais, ligados à
justiça social, à gratuidade, ao
cuidado, à solidariedade, ao trato humano com as pessoas, à liberdade de
expressão ocupem um lugar irrelevante quando não são feitos também mercadorias,
colocadas na banca do mercado e exploradas por conhecidos populistas ou por
todo um mercado de literatura de autoajuda que mais ilude que ilumina.
Ora, destes valores
altamente positivos vive fundamentalmente a política que se entende como prática
da ética social. Não é suficiente a denúncia das diferentes corrupções sem
apresentar formas alternativas ou legais de realizar os projetos políticos.
Facilmente, caímos no moralismo como se
somente com a moral se resolvessem todos os problemas
A Igreja Católica ajuda
a criar uma ética pessoal, de retidão e integridade. Há políticos que
incorporam esta ética (ética na política). Mas ela não elaborou suficientemente
uma ética social e política que trabalhe as instituições, os braços longos do
poder que devem ser transparentes e um serviço público (ética da política). É
nesse campo que ocorrem as perversões da política. Especialmente grave é o
financiamento privado das eleições, que se traduz por troca de favores e
implica alta corrupção.
No Brasil com tradição
patrimonialista, o político facilmente considera seu o bem público e se
apropria dele sem maiores escrúpulos. É roubo do pão que falta na mesa do pobre, é livro que o estudante não tem, é
remédio inacessível ao enfermo necessitado.
A desejada reforma
política reintroduziria a ética na política — para Aristóteles, política e
ética eram sinônimos.
* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de
Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger
a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010),
entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of
Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo,
terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada
recentemente em Cancun, no México.
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