Serra Catarinense/Fogueira
* Por
Urda Alice Klueger
(Para Eduardo Venera
dos Santos Filho)
(...) você anunciou que
iríamos fugir. Deslizamos rapidamente para o quarto. Você procurou um agasalho
para mim e perguntou se eu tinha a chave para voltar, e um instante depois
pulávamos a janela e fugíamos correndo até seu carro.
Lembra como a vida era
linda? Lembra o quanto nós nos amávamos? Lembra de como ficamos rodando sem
destino por algum tempo, até que você me perguntou se eu tinha algum plano,
alguma ideia do que faríamos a seguir? Pensei um pouco e disse-lhe que
poderíamos fazer uma fogueira. A ideia parecia um pouco estranha, mas era lindo
pensar num grande monte de fogo subindo por dentro da noite fria e escura, e
você perguntou-me aonde é que faríamos a fogueira. Disse-lhe que poderíamos
procurar algum lugar, e no instante seguinte você pisava forte no acelerador e
seguia para fora da cidade.
Rodamos devagar pela
rodovia, observando atentamente ambas as margens, tentando idealizar uma
fogueira em algum dos lugares que víamos. Havia um local em que a estrada
rasgara a encosta de uma coxilha suave, uma coxilha onde havia um capão de
mato: pinheiros altos sombreando raquíticas árvores que mais se assemelhavam a
arbustos. Resolvemos tentar aquela: sob pinheiros, sempre há galhos caídos, e
se lá não houvesse madeira, tínhamos tempo para procurar outro lugar.
Você lembra? Do pequeno barranco, da cerca de
arame que delimitava a rodovia, da árvore que fora quebrada ou derrubada
recentemente, entrevista na claridade da lua que se filtrava entre os
pinheiros? E de como procuramos erva seca, agulhas de pinheiro e pequenos
galhos para começarmos o nosso fogo? E de como tudo estava tão molhado de
orvalho que gastamos uma caixa de fósforos inteira sem conseguirmos sequer uma
chama? E de como você se feriu nas farpas do arame da cerca, quando foi até o
carro buscar outra caixa de fósforos? E você lembra como a noite era mágica e
linda, como a noite era cheia de ternura e poesia, e de como a vida era bela?
Afinal, conseguimos a
primeira chama, frágil, vacilante, e cuidamos dela como se fosse um amor
perfeito assustado, com medo de desabrochar. Talvez tivéssemos tanto amor que
transmitíssemos coragem ao amor perfeito amedrontado – a chama se ergueu,
orgulhosa, desdobrou-se em outras, exigiu alimento, e corremos a lhe oferecer
cada vez galhos mais grossos , quebramos pedaços da árvore derrubada, até que a
fogueira se tornou plena e lhe demos a árvore inteira de presente.
O fogo, afinal,
crepitou e subiu pela noite como uma coluna sagrada, e a fascinação que
sentíamos por ele provavelmente era igual à fascinação dos primeiros homens das
cavernas diante do primeiro fogo que existiu. Ele já não precisava de nós, mas
nós precisávamos dele, e nos sentamos, um em cada lado da fogueira, a olhar
para as chamas enormes, exigentes, bailarinas, coloridas, devorando um pedaço
da noite como uma criança faminta devora um pedaço de torta, soltando milhões
de fagulhas efêmeras pelo ar, fazendo sombra para a lua que se tornou pálida e
distante. Tínhamos uma fogueira inteira para nós; tínhamos pedras para nos
sentarmos; tínhamos o céu como nosso teto – o que mais a vida poderia nos
oferecer? Eu olhava para você sentado lá do outro lado, absorto na contemplação
do fogo, com as chamas criando sombras dançantes sobre a perfeição das linhas
do seu rosto, com as chamas esculpindo em suas faces uma estátua que parecia
pétrea e encantada, e comparava-o a Winnetou sentado ao lado de alguma fogueira
de lenda, no meio do descampado desolado de uma campina de Karl May.
1973
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda
em Geografia pela UFPR
.
Tantas décadas depois e as lembranças estão aí, fortes. O amor não tem substituto. Sua marca perdura para sempre.
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