Passo miúdo
* Por Nei Duclós
Aos poucos, Febrônio descobriu
que não existiam mais velhos no país. Os que deviam ser anciãos estavam fantasiados de papagaio e dançavam a rumba em
eventos de Terceira Idade. Ninguém mais usava, como ele, chapéu de feltro, ou
manta para este inverno que não se instala de forma definitiva, deixando claros
de veranicos a assanhar a passarinhada da praça. Havia um surto coletivo no ar.
Ele sentia a vibração mesmo antes de sair, quando olhava os sapatos pretos
lustrados, a calça de lã com bainha italiana, o casaco xadrez e a camisa de
flanela abotoada até o pescoço. Sentia desconforto. Não dispunha de amigos para
repartir as horas. E não tinha vontade de participar da arenga sobre os
benefícios da qualidade de vida. Nem ficava de olho nos privilégios das pessoas
que, como ele, tinham cruzado o cabo da Boa Esperança.
O mais chato era que não podia
conversar sobre a morte. Talvez o fato de estar cercado pela guerra civil fosse
um empecilho. Refletia sobre esse paradoxo ao não compartilhar com o entusiasmo
das rodas que se formavam para comentar as últimas atrocidades. Também não
engrossava o tumulto dos que acorriam para a frente do quartel da polícia,
atraídos pelo som das sirenes e aos gritos de” pegaram o tarado”, ou o louco, ou
o bandido. Não era esse tipo de impacto que precisava desfrutar num convívio de
pessoas com idade próxima do primeiro século de vida. Ele sentia falta do
segredo que existia anos antes, e que costumava cercar as mortes com algum
mistério. Não considerava essa falta que sentia como um desvio de conduta.
Achava normal fazer a morte sentar-se ao seu lado para uma conversa. Ela sabia
contar histórias.
O fato é que o excesso da morte
tinha inviabilizado o suspense. Os corpos se amontoavam sem que houvesse tempo
para o debate, o sussurro, o conluio entre teses, posições. Não se podia
contrapor, raciocinar, investigar, procurar informações. Tudo se atropelava num
clima de Juízo Final sem julgamento. Não havia tempo, nem disposição, para
entender direito o que tinha acontecido. Hoje tudo parecia claro demais. O
padrasto que matou mulher e enteados, a avó que enfrentou o neto drogado, todos
se envolviam em coisas óbvias. Os assassinos confessavam, se entregavam ou
apareciam na televisão para logo depois serem capturados. Não havia uma chave
falsa, uma pista, um frasco de perfume, partido, embaixo da cama.
Tudo era decifrado pelo DNA e o
que ainda permanecia oculto obedecia aos velhos ditames da política e da
corrupção. Os habitantes do país se atiravam à carnificina no trânsito ou nas
festas de fim de semana como se quisessem fugir definitivamente, furar a
fronteira, aportar em outros territórios, que estivessem livres do astral que
tomou conta de apartamentos, botecos, cinemas. Febrônio tinha perdido para
sempre a nação que o criara, e passeava pelas ruas tendo de aturar os berros
dos camelôs. Os bancos da praça continuavam lá, mas era temerário se aboletar
em qualquer um deles. A mendicância e a loucura faziam ponto nos últimos
espaços públicos e, derrotado, ele voltava para casa a pé, já que cansara de
aturar desaforo de motoristas revoltados com sua condição de velho não pagador
de passagem.
Chegava em casa e abria a
veneziana. Morava no mesmo lugar a maior parte da vida. Lá, no pequeno quintal,
protegido por alto muro que mandara construir, sentava no seu banco favorito e
aguardava os pássaros migratórios que teriam de passar muito acima dos fios. No
rádio já não tocavam mais música e o que havia era um discurso interminável, de
religiosos, políticos, artistas, anúncios.
Harmonia, melodia, letra tinham sido erradicadas, pois eram recursos que
não compactuavam com o ambiente de desordem. Gostava de estar com a cabeça
desocupada, para pensar nos crimes famosos, nos detetives idôneos, nas mulheres
fatais que conseguiam sair ilesas, e nos velhinhos criminosos que acabavam
caindo na própria armadilha.
Talvez fosse isso! Os velhos
continuavam suspeitos, mas agora se faziam de vítimas para driblar as
investigações. E quem disse que ainda existiam investigadores? Esses tinham se
desviado de fato de suas condutas, acomodados graças à proliferação dos
denunciantes. Não gostava de certas palavras como alcagüete, próstata,
tripartite. Quando as ouvia, ou algo parecido, sabia que morava no pesadelo da
linguagem. Fora escrivão a vida toda e as palavras eram precisas, sintonizadas
com os depoentes, que eram articulados, alfabetizados em sua maioria ou pelo
menos tinham o primário bem feito. Agora não entendia nada, a começar pelos
nomes. Joilton, Jordinelson, Aricleide? Onde estavam as Aracis, os Gessys, as
Brígidas, as Titas e até mesmo os Febrônios?
Tinham sumido pelas mãos de
cartórios desonestos. Esses, aceitavam tudo porque neles trabalhavam os
retardados que na época de Febrônio eram os últimos da classe. No fundo, os
sujeitos reprovados tinham tomado conta da nação. Destruíram as escolas,
esconderam os melhores livros, erradicaram os nomes bíblicos para que o país
sumisse junto com sua população, agora batizada com nomes híbridos, massacrada
e de coração seco. Tinham até acabado com os velhos, que hoje viviam a brincar
de roda, fantasiados de periquita ou fazendo propaganda de estimulantes de
riscos cardiovasculares.
Febrônio mantinha-se bem vestido
dentro de casa e aguardava a chaleira chiar para fazer seu café. Depois, sentava
no banco favorito a esperar as aves. O barulhão dos motores na avenida próxima,
os gritos dos adolescentes armados, a serra elétrica em alguma construção
próxima, tudo o rodeava nesse final de tarde, quando suspirava por uma boa
conversa. Sim, ele estava velho. Sim, queria conversar sobre a morte. Não, não
queria se iludir com a melhor idade. Febrônio era um caso sem cura, mas seu
desencanto era fruto do que o mantinha intacto: uma vida plena, vivida no passo miúdo do país que um dia fora
soberano e que agora se esvaía junto com as nuvens coloridas.
No lugar do arco-íris, uma grande
lua suspeita mostrava o brilho da sua coroa. A noite se aproximava para que ele
voltasse a sonhar.
* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua”
(1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004).
Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em
Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
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