“Bagaço” para fermentar
idéias
Por Pedro J. Bondaczuk
O hábito da releitura é uma das
minhas manias mais renitentes – e, certamente, a mais saudável e proveitosa das
tantas que tenho – que adquiri há cerca de 20 anos e que se torna mais intenso
à medida que o tempo passa. Houve ocasião em que detestava fazer isso. Por
melhor que um livro fosse, o lia de um único sopro e depois o relegava a uma
prateleira qualquer da minha vasta, mas caótica, biblioteca. Quem saía perdendo
com isso, claro, era eu, e não o autor.
Dia desses, relendo textos
selecionados, desses que sempre que posso saboreio outra vez – pedaço a pedaço,
como a uma deliciosa torta – topei com
uma crônica do advogado, jornalista e professor Isolino Siqueira,
intitulada “Defeito de fabricação”, que ele escreveu (ou publicou, sei lá!) em
9 de setembro de 1984, em que aborda exatamente a questão da releitura.
Antes, peço licença para abrir um
parágrafo para apresentar (a quem não o conhece, evidentemente) esse
intelectual que tanto admiro. Conheci-o na Faculdade de Direito da
PUC-Campinas. Lecionava “Economia Política” (nem sei se essa matéria ainda
consta do currículo do curso). Isolino Siqueira foi, portanto, meu professor e
dos mais exigentes. Bendita exigência! Mas o acaso é caprichoso. Vejam o que
ele me aprontou! Hoje, sou colega de Academia Campinense de Letras – fui alçado
à condição de “imortal” em 1992 – de ninguém menos que o mestre que tanto
admirava e admiro. E por pouco ele não foi também o meu chefe no Correio
Popular de Campinas onde, durante muitos anos, foi Diretor de Redação. Fui
contratado como editor pelo jornal exatamente na ocasião em que meu professor
estava deixando o cargo, para assumir outras (e mais elevadas)
responsabilidades. Mas tive ocasião de manifestar-lhe, e de público, minha
admiração e respeito. Fiz uma conferência na Academia abordando o “cronista”
Isolino Siqueira, e sua importância para o jornalismo de Campinas. Peguei-o de
surpresa e judiei do seu nobre coração. Fiz a “malvadeza” de arrancar lágrimas
de emoção do querido mestre.
Voltemos, porém, à referida
crônica. Nela, Isolino, após mencionar vários dos seus hábitos, aos quais
classifica de “manias”, confessa: “Os livros, estes eu os guardo. Tenho por
eles um carinho à parte e não entendo bem guardá-los como se isso fosse
colecionar livros. Entretanto, não gosto
de reler. Mais parece preguiça mental. Livro
lido é como bagaço. Guarda-se para aproveitá-lo como fermento de vez em quando”.
Ao contrário do mestre, porém,
como já enfatizei, sou vidrado em releituras. Há uns vinte anos, reitero, eu não
era assim. Tinha sede e fome de conhecimento e minha voracidade por ler coisas
novas impedia-me de saborear o “deja vu”. Tolice minha, claro. Porque, na
primeira leitura, na ânsia de chegar à última linha para descobrir a conclusão
do autor da sua história (ou tese, ou seja lá o que for), muita coisa nos
escapa. Não percebemos muitas nuances, determinadas sutilezas, que tendem a
valorizar (ou desvalorizar quando se trata de um mau escritor) certos autores.
Em minha programação de leituras
para o ano, intercalo livros novos, recém-adquiridos, com outros já lidos.
Alguns, há décadas. Outros, há meros meses. Claro que nem sempre respeito essa
pauta (e nem poderia). Freqüentemente, recebo lançamentos, quer de amigos, quer
de autores que só conheço de nome (e alguns, nem isso), que me pedem para fazer
críticas às suas obras. Para não causar desespero aos editores dos espaços que
ocupo (em jornais e na internet), pois sei o quanto o deadline é importante,
esses livros ganham prioridade e bagunçam toda a programação. Isso, porém,
afeta apenas a leitura, nunca a
releitura, que para mim é “sagrada”. Como se vê, a coisa já descambou, mesmo,
para mania.
Entre as preciosidades que reli
em 2006, duas se destacam. Uma, foi a releitura da coleção completa dos
“Sermões” do Padre Antônio Vieira, sem favor algum, um dos maiores estilistas
de língua portuguesa em todos os tempos. Quem tem a pretensão de escrever (e já
nem digo escrever bem), tem a obrigação de ler, pelo menos uma vez na vida, as
inspiradas páginas deixadas por esse controvertido, mas talentosíssimo
sacerdote. Já reli os “Sermões” de Vieira três vezes e pretendo fazê-lo muitas
mais.
A outra releitura foi do livro “A
guerra do fim do mundo”, do peruano Mário Vargas Llosa, que havia lido por
ocasião do seu lançamento, em 1981, sem lhe dar o devido valor. O autor aborda
o episódio de Canudos, o fato da história brasileira sobre o qual mais se
escreveu até hoje (foram mais de 700 textos, entre livros, monografias etc.) e
sobre o qual menos as pessoas conhecem. A abordagem é absolutamente precisa,
embora se trate de um romance. Llosa mistura, com maestria e inegável talento,
personagens reais com outros de ficção, para nos brindar com uma obra
estonteante, magistral, dessas de nos tirar o fôlego quando chegamos à página
final. Não entendo como um escritor que escreve um livro desses demorou tanto para ser agraciado com um Nobel de Literatura! É por essas e outras que a Academia Sueca não é
levada a sério. Por isso, “A guerra do fim do mundo” merece toda uma crônica à
parte, que me disponho a escrever oportunamente (e sei que serei cobrado).
Mas a maior utilidade das minhas
releituras se manifesta quando atravesso uma dessas fases – tão temidas para
quem vive de textos – de obliteração mental. Quando as idéias originais teimam
em não se manifestar, para meu (evidente) desespero, já que tenho a obrigação
de produzir, por força de compromissos assumidos, dez crônicas originais por
semana, sejam quais forem as circunstâncias. É então que esse “bagaço” (no
dizer do professor Isolino) mostra a sua força. Fermenta idéias, aparentemente
banais, que, após passarem por esse processo, se transformam. Viram capitosos
“vinhos”, que me causam embriaguez. E repasso isso às minhas crônicas. Meu medo
é, apenas, que esse novo “produto”, originado dessa fermentação mental, não
seja de má-qualidade, daqueles que causam terríveis ressacas e provocam uma
renitente dor de cabeça em quem o consome. Espero que não seja este o caso
destas mal-traçadas linhas...
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Pouquíssimas vezes revi filmes ou reli livros, exceto os acadêmicos, com os quais só me sinto dispensada e sabendo para a prova depois da terceira leitura. Entendi o que disse, porém, comigo é diferente. Fico enfastiada e nem penso em reler. Dom Casmurro eu reli, e gostei, mas não me lembro de outro. Quando menina relia as revistas em quadrinhos e não me aborrecia. Não sei o que me fez mudar de ideia.
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