segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O malandro

* Por Rodolfo Viana

O malandro Benê foi ter com o diabo. Fez um escarcéu no céu, e desceu. Lamentava não ter recolhido o prêmio do jogo do bicho que ganhara instantes antes do fim. Pobre Benê, que morrera antes de deixar de ser pobre! Mas o que lhe corroia a alma era ter deixado a vida sem ter consumado sequer uma noite com uma tal beata, de olhos verdes como o verde da Mangueira. Pois que Benê, sambista inquilino do céu, não tinha sossego justamente onde a paz deveria reinar. Saiu na surdina, sem avisar os arcanjos que guardam o firmamento. Foi ao inferno, onde já era esperado pelo pai dos desgraçados.

- A que devo tua visita nestas bandas de cá, nego Benê? – perguntou-lhe o diabo, plantando um sorriso sincero nos lábios e antecipando um abraço quase fraterno. De relance, pareciam bons amigos, o diabo e Benê. Como bem é sabido, o senhor das trevas é sempre um anfitrião ímpar aos que pisam em seu solo soturno. É envolvente qual uma mulher, se mulher não for.

- Quero voltar à terra, seu Diabo – disse o malandro, em meio a lamúrias, e explicou que sua escola de samba faria, em poucos dias, o último ensaio geral antes de pisar na Sapucaí. Queria ter certeza que estava tudo pronto para a Mangueira brilhar naquele ano. Explicou que fora criado no barracão, com passistas, letristas, toda uma bateria competente, repique, algumas belas mulatas e cerveja. Aquilo fora sua morada em vida: jardim, sala de estar e alcova. Nada disse sobre a tal moça, real motivo para ascender a terra.

- Eu tenho muito apreço por ti, nego. Minha legião e eu admirávamos teu modo de vida. E por isso, devido à consideração que guardo a ti, farei uma proposta simples –  expôs o diabo, mão esquerda posta sobre o ombro daquele homem, olhos pregados na medalha de Nossa Senhora que Benê trazia no peito.
- Tu deves fazer um samba para mim. Um samba qualquer, porém sem sequer uma ponta de saudade.
Foi então que o diabo sorriu e voltou os olhos para os do malandro, que ouvia atentamente.
- E se não for possível, seu Diabo? Se eu não conseguir fazer um samba sem saudade?
- Então, tu ficarás aqui – disse o diabo pausadamente, para assegurar que o malandro entendia todas as palavras.
 - Para sempre, eu te terei.

Sob a medalha de Nossa Senhora e os cordões de patuá que lhe fechavam o corpo, batia um coração destemido e orgulhoso, o que é uma metáfora, pois corações não batem em corpos mortos. Pois devido à falta de temor e ao orgulho, sendo este último mero resquício do ser humano, o malandro aceitou a proposta. Soava-lhe vantajosa, até. Em vida, fora autor de vários sambas. Não seria grande empreitada fazer ausentar-lhe a saudade e criar letra e melodia. Ritmo e poesia nunca foram problemas. Antes de cair na terra dos vivos, ainda ouviu o diabo advertir que, quando quisesse deixar o mundo, deveria arrancar a medalha de Nossa Senhora do peito.

O diabo, senhor da fartura desregrada, foi-lhe sublime. Deu a Benê feição semelhante de quando vivo: um metro e setenta e um de ébano, mirrado e gingado, além de um chapéu e um paletó brancos e um par de sapatos bicolor. À parte, a sorte providencial jogou tal homem no portão central do barracão, seu sempre lar.

Benê morrera de causas naturais para um homem como aquele, da malandragem: cirrose. Pois que entrou e logo foi atrás de bebida. Agora, com um sorriso irônico e certo escárnio pelas preocupações abjetas daquilo que outrora chamava de vida, embriagava-se outra vez. Nada temia, pois morto estava. E o que há de temer um homem que amarrou pacto com o diabo?

A folia do samba não pede descrições mais detalhadas. E nem o negro Benê saberia pôr em palavras o compasso do batuque, o choro do cavaco, o banjo de notas despudoradas. Nem os adornos multicolores, o cheiro agreste de suores, o barulho das vozes. Nada se assemelhava àquilo, nem no céu, nem no inferno.

Dentre tantas texturas, sons, aromas e paladares, o malandro avistou, do outro lado da quadra, a bela Beatriz. Mulher acanhada, perdida na folia vadia do samba. O que tinha de beata, seu irmão tinha de pândego e, justamente para ficar de olho nele, Beatriz atrevera-se a ir ao ensaio.

Em vida e carne, Benê desejara aquela morena de olhos verdes como outro verde. Aquela que nunca cedera, apesar das investidas do malandro. Ora apaixonado, ora libertino, Benê tentara, sem sucessos, uma noite, um beijo, um abraço, um olhar. Uma atenção distraída, que fosse. Tentara como se aquilo fosse uma religião, e o malandro Benê, vossa santidade pornográfica.

Mas naquela noite, para quem fechara acordo com o diabo, garantindo-lhe a alma em caso de rescisão contratual, dormir com a bela Beatriz seria um mero capricho de defunto, como o era voltar ao mundo. Pois que capricho fosse, e nisso pensava Benê ao esboçar um certo sorriso. Deitar-se-ia com a cabrocha.

Quando a morena Beatriz avistou Benê, ele já se aproximava. Um olhar diferente, mas sim, era ele! Disseram que havia morrido, mas lá estava o negro Benê. Não havia como explicar a vida do malandro, assim como não tinha razão o coração sobressaltado da donzela Beatriz, surpresa consigo mesma pela reação fisiológica. Quiçá desejasse Benê tanto ou mais que poderia conceber.

- Pensei que tivesse morrido, nego. A frase saiu antes de ser processada pela cabeça.
- Morri e voltei. Estava com vontade de te ver – respondeu Benê, com um certo sorriso e olhos semicerrados.

Beatriz achou graça, timidez e rubor na fala do malandro. Emendou um “não brinca com essas coisas” e sorriu. A beata estava satisfeita em rever aquele sujeito, objeto e causa de algumas noites mal-dormidas.

Dispersou-se na multidão, a mulher. Seus olhos, no entanto, pareciam haver encontrado morada em Benê. Beatriz não perdeu o malandro de vista um segundo sequer. Já nem prestava atenção no irmão, razão para sua presença no barracão. Encarava, satisfeita, o sambista, e pensava muito em pecado e pouco em castigo, de certo. Enquanto Benê, malandro de dom e ofício, sabia que a morena o observava, marcando seus passos no meio da massa.

Por acaso ou obra do malandro, Beatriz descuidou-se. Não enxergava mais o malandro. Sentiu um certo frio na barriga. Girava a cabeça em busca de um corpo negro entre tantos outros.
- Não desespera, nega – sussurrou uma voz rouca em seu ouvido. Era o malandro, tomando-a pelo braço. O frio dissipou-se com o calor que aquela voz próxima ao ouvido causava. Em posse daquela que, por aquela noite, seria sua mulher, Benê arredou pé do salão. Não perguntou à beata onde ela gostaria de ir: os olhos da mulher diziam tudo.

Em pouco tempo, e sem que a mulher protestasse, estavam numa construção abandonada. Seria lá que o desejo de Benê se consumaria. Também seria lá que Beatriz descobriria o que realmente é desejar alguém.

Entre gestos instintivos, Beatriz murmurava seus desejos. - Eu sempre soube que te teria, nego – repetia a moça, para espanto de Benê, que lhe interrompia as frases com beijos e mordidas. Que desejo é esse, que não aflora em vida e se faz vivo depois da morte? - Eu sempre soube que te teria, nego.

Benê deleitava-se com os sussurros da beata.

Em êxtase, a bela morena, emaranhada nos beijos, apelos e pêlos de Benê, arranhava-lhe o peito com devoção. Tamanho era o desejo que, como em surto epiléptico (e o que é a paixão, se não uma epilepsia?), arrancou do peito do malandro a corrente de Nossa Senhora.

Antes de se aperceber de volta ao inferno, Benê teve tempo de ver, mesmo que de relance, a corrente na mão da beata. Ainda ouviu um “eu sempre soube que te teria, nego”, mas não soube ao certo se a frase saiu do diabo ou dos lábios recém beijados da dama.

Estava no inferno, o desgraçado Benê.

Seu regresso temporário a terra foi inútil. Frustrado e incontido em desejos, o sambista cogitou desfazer o pacto com o diabo. Moveria mundos para alegar que o diabo não cumpriu sua parte no acordo. Ademais, se o diabo fosse esperto, saberia que promessas de malandro não se cumprem. Faria um inferno do inferno, e não aceitaria estar de volta sem ter possuído a tal beata.

- Trato é trato, nego – adiantou-se o diabo. Como bom advogado, indeferiu o protesto do malandro. - Tuas razões foram explícitas! Querias ver o último ensaio geral. Foi-te concedido tal desejo, oras – objetou o diabo, pleno em sua razão legal. - E o que tem aquela mulher? É somente uma entre tantas, e tantas possuíste para te lamentar por uma única. Anda, prepara-te para fazer o meu samba – emendou o pai dos amaldiçoados. Cabisbaixo, Benê concordou.

Mas o malandro não conseguiu fazer um samba. O cavaquinho não chorava como devia, nem a letra fazia sentido. Não havia poesia, ritmo ou rima. Tentava pensar em algo, mas os olhos da morena Beatriz permeavam seus pensamentos, anuviando qualquer deixa de samba. O que antes era carnaval, tornou-se Quarta-Feira de Cinzas.
- Eu não consigo – disse o malandro. E repetiu: “Eu não consigo”.
- Mas o que acontece, nego Benedito? Cadê aquela tua cadência? – zombou o diabo, dono de todo o escárnio.

O malandro nada respondeu. Apenas pensava em Beatriz, a morena da Mangueira. Ele era a personificação da saudade. Sentiu o coração, outrora vadio e no compassado do ronco da cuíca, pesar-lhe no peito, antiga morada de Nossa Senhora. Sentia saudade, e continuou a sentir até que o diabo tomou-lhe a eternidade. O castigo era o sentir saudades até o fim dos tempos. E a saudade era maior quando o negro Benedito encarava os olhos do diabo, verdes como o verde da Mangueira.

- Eu sempre soube que te teria, nego – disse o diabo, antes de trancafiar o malandro nos confins do inferno. Desde então, o céu ficou sem samba.


* Jornalista

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