segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Silêncio e obediência

* Por Daniel Santos


Como é triste a filha do açougueiro! – percebem quantos aguardam o ônibus no outro lado da rua, enquanto namoram os olhos azuis dessa que nem bela se sabe e que sorri, quando sorri, apenas para agradar fregueses.

No mais, atende com presteza de serviçal aos urros de um pai que possivelmente a quer mas, ignorante na demonstração do afeto, rosna e bufa e grunhe e, mais que tudo, dá ordens como um trovão. E ela obedece.

A filha do açougueiro é triste e obedece. De pé o dia inteiro, serve porções de alcatra, maminha e filé, desfaz-se da carne como partes de si  mesma que ela sequer considera. Ignora, assim, que muito a desejam.

Em alguns anos, já gorda, ainda sem marido, terá buço e queixo duplo, mas sem queixas, nem a mais remota suspeita de que o tempo passou. Sem mínimas ambições, não experimentará sequer ressentimentos.

Talvez reste o azul de seus olhos, uma cor que o tempo não diluirá. Mais nada, nem a lembrança de que esteve sempre ali cortando carnes, enquanto a namoravam à distância na espera do ônibus ... que passou.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Um comentário:

  1. Parece uma vida inútil, no entanto ela serviu carnes, nutriu corpos que as comiam, e esperança nos que a desejavam em vão.

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