Ciclo
Por
Cida Pedrosa
Naquela casa todos já nasciam velhos. Da hora do parto à primeira labuta
o tempo era curto. Com a menina não foi diferente. Mesmo sendo a filha mais
nova, de quatorze irmãos, o destino já estava traçado antes da lua pousar no
seu rosto pela primeira vez. Duas irmãs mais velhas haviam casado e faltavam
mãos femininas para as obrigações do dia. Começou jogando milho para as
galinhas, varrendo o galinheiro, tangendo as cabras para o chiqueiro, aboiando
os bezerros rumo à roça, lavando as xícaras da merenda e auxiliando irmãs a
encherem potes tão grandes quanto as jarras de Cleópatra. A única coisa que
detestava era recolher os penicos pela manhã. Maldizia as vezes em que cada uma
da casa acocorava-se sobre o urinol de ágate branco e enchia a noite de chiado
e charco. No mais, habituou-se logo cedo a brincar com o trabalho e a ver o
pôr-do-sol como recompensa.
Naquela casa todos já nasciam velhos e nem o medo era permitido. À
noite, quando as pernas se abastavam na rede e olhos aflitos seguiam as figuras
que a luz das frestas desenhava na parede, apenas o murmúrio do vento e o mugir
das vacas eram ouvidos. Na garganta da menina nenhum gesto se fazia. O grito de
vá dormir, deixe de besteira era mais assustador que os fantasmas postos na
parede. Neste tempo aprendeu a levantar-se, correr para o terreiro e fazer xixi
sob os raios do luar. O medo passava e evitava o nojo de acocorar-se sobre o
ágate branco, quase cheio.
Naquela casa todos já nasciam velhos. Daí o espanto da menina quando
ouviu pela primeira vez a mãe dizer: saia já daqui, pois isto não é coisa para
criança escutar. Ficou parada um tempão e foi preciso sentir o beliscão para
fugir na carreira. Desde então aprendeu a ouvir murmúrios e a decifrar os
mistérios por entre portas e paredes. Descobriu que as mulheres parem iguais às
vacas, os homens cruzam igual aos touros e que existem certos dias do mês em
que as irmãs lavam paninhos lá para as bandas do curral.
Naquela casa todos já nasciam velhos. A menina não viu quando surgiram
peitos, sorriu o rapaz, pariu os filhos, perdeu o marido e muito menos quando
ao pôr-do-sol um rastro branco brilhou em seus cabelos.
*
Poetisa e vereadora no Recife
Nenhum comentário:
Postar um comentário