Um novo modelo de medicina
* Por
Elaine Tavares
Ontem passei algumas
horas dentro do HU, o Hospital Universitário da UFSC. Desde bem cedinho já se
pode ver muita gente por ali. Nas primeiras horas começam a chegar as
ambulâncias do interior do estado. É gente demais. Descem com os olhos aflitos,
semblante perdido. Estão muito longe de casa, doentes, frágeis, sozinhos. Tudo
o que querem é chegar e serem atendidos por alguém que lhes segure a mão e diga
que as coisas vão ficar bem. Mas, nem sempre é assim. Seguem-se horas e horas
de espera nos corredores lotados de outros seres como eles: perdidos, sozinhos,
frágeis na dor.
Cada corredor de cada
especialidade é um mundo. Ali se acotovelam vidas, sofrimentos, angústias. Afinal,
estar doente é estar submetido a nossa condição mortal, é ficar cara-a-cara com
a ceifadora. Daí esse medo que nos toma. Na sala de espera do raio-x algumas
pessoas choram. Devem sentir muita dor. Por um átimo, os olhos se encontram e
tudo o que se percebe é um atormentado pedido de ajuda, sem eco. Não há nada a
fazer. Há que esperar. Nos salas de quimioterapia, os que esperam evitam olhar
nos olhos como se tivessem vergonha de estarem doentes. Ficam ali, fixados no
nada, ruminando uma profunda solidão.
A visão dos corredores
do HU não é diferente de outros tantos hospitais públicos pelo Brasil afora.
Gente demais, buscando algum alívio para essa dor de estar doente. No mais das
vezes, não encontrando. Mas, a lotação dos hospitais decorre muito mais por
conta do modelo de cuidado com a saúde que nossa sociedade escolheu. Não se faz
prevenção de doenças. A política é tratar o que já se instalou, e de
preferência com remédios bem caros para que as “pobres” empresas farmacêuticas
possam lucrar muito. O modelo brasileiro de um Sistema Unificado de Saúde é
muito bom, mas acaba entravando nessa lógica que muito mais serve às empresas
da morte do que ao ser que precisa de ajuda.
Para começo de conversa
a melhor prevenção de doenças é uma vida saudável. Só que para isso a pessoa
precisa ter condições de tê-la. Alimentação adequada, higiene, moradia digna,
sossego emocional. Num país dependente, onde as diferenças econômicas são
abissais, como conseguir isso? Como pode uma pessoa que vive num lugar
insalubre, sem comida, sem abrigo, colocada cotidianamente diante da violência,
da miséria, da dor, pode prevenir enfermidades? A coisa deveria começar por aí.
Mudar o modelo da organização da vida, destruir o sistema capitalista que exige
a morte de um para que o outro viva. Uma pessoa que vive em condições dignas de
vida tem menos chance de adoecer.
De qualquer sorte,
mesmo com todo o cuidado e prevenção, e ainda que fôssemos um país soberano,
com outra forma de organizar a vida, haveriam de existir doenças e doentes. E
aí, o que fazer? Uma solução encontrada por países como Cuba é o cuidado da
pessoa na sua totalidade. Através dos médicos de família, cada pessoa é
monitorada e acompanhada nas suas enfermidades, de maneira sistemática. O
médico visita a pessoa, sabe seu nome, conhece seus problemas e, com base da
história completa de cada um, consegue dar soluções para os problemas de saúde
que aparecem. Remédios, só quando realmente necessário. Não há uma política
medicamentosa do cuidado com a vida. A saúde é vista como condição básica de
ser no mundo.
Para qualquer um que já
tenha precisado de atendimento médico em um hospital no Brasil, fica claro que
há uma diferença gigantesca no modelo de medicina. O mesmo acontece nos Postos
de Saúde. O modelo é o de atendimento por ficha. O médico, mesmo contratado
para ficar no posto por quatro horas, atende apenas um número x de fichas. O
que significa que se uma pessoa chegar depois da última ficha, não será
atendida, mesmo que o horário do médico ainda não tenha terminado. Essa lógica
da ficha obriga a pessoa doente, além de ter de se enfrentar com toda a
angústia de estar enferma, a chegar aos postos na madrugada para garantir a tão
esperada ficha. Pessoas há que dormem no relento da noite para garantir a senha
do atendimento. É um paradoxo. O doente, que deveria ser cuidado, amparado,
acolhido, precisa enfrentar toda essa outra carga de dor, para além da doença.
Tudo isso torna o atendimento nos Postos de Saúde uma farsa. Ali, só são
possíveis os agendamento de rotina, o trabalho de acompanhamento de doenças
crônicas. Se o vivente estiver mesmo doente, a única saída é o hospital.
Mesmo os médicos mais
experientes afirmam que essa foi a forma que os pobres encontraram de furar o
bloqueio da falta de atendimento. Como o Posto de saúde funciona por ficha, e
no geral são poucas, uma ou duas vezes na semana, as pessoas preferem buscar
diretamente o hospital. Mesmo que demore. Pelo menos lá o atendimento pode ser
possível. Daí o inchaço dos hospitais, recebendo desde casos gravíssimos até
pessoas com gripe. A hospitalização acaba sendo uma espécie de técnica de
sobrevivência dos empobrecidos, ainda que isso acabe gerando toda a
superlotação que pode, inclusive, fazer com que alguém que realmente precise do
atendimento de urgência fique sem ele. É uma roleta russa Um jogo de sorte.
Mesmo a classe média,
que pode pagar por planos de saúde, já está percebendo que os modelos de
mercadologização da saúde avançam para o caos. Marcar uma consulta com um
especialista através do plano de saúde pode demorar dois meses ou mais, tal
qual no SUS. E o atendimento de emergência nas clínicas dos planos não se
diferencia muito do que é dado nos postos de saúde, consultas de menos de cinco
minutos e uma receita gigante de remédios caros. Não poderia ser diferente, o
médico que atende no plano é também o que atende no posto. Ele tem aprendido
assim na escola. É um modelo de ensino da medicina. Cada vez menos a atenção
com a pessoa, cada vez mais atenção nos exames. N. T. (54 anos) conta que foi
ao médico por estar com sintomas de pressão alta. Era nova na cidade, não
conhecia ninguém. Marcou consulta numa clínica particular. O médico recebeu,
perguntou o que ela sentia, ela respondeu. A conversa não durou dois minutos e
ele já começou a preencher a receita. “O senhor não vai me examinar?”,
perguntou, perplexa. Ele largou a caneta, olhou para ela pela primeira vez e
perguntou: “A senhora quer que lhe toque?” A mulher saiu dali horrorizada,
chorando, sem chão. Seguiu mais doente do que entrara. Médico particular, 250
reais.
Agora, vivemos no
Brasil um momento de “levante” por parte de alguns médicos. Não aceitam a
proposta do governo de obrigar os estudantes de medicina a passarem dois anos
em atendimento nos Postos do SUS. Isso não é surpreendente. Nem a solução dada
pelo governo, nem a reação dos profissionais da medicina. Qualquer das duas não
resolve de imediato a situação daqueles que sofrem o sistema. A medida
governamental é pirotécnica. Não é obrigando os alunos a se defrontarem com a
pobreza que os fará melhores médicos. Alguns até poderão mudar sua forma de
pensar, mas, esses, que o fazem, certamente o fariam em algum momento da vida.
Estão sensibilizados para isso. Já os que estão contra a medida não poderiam
atuar de forma diferente. Foram ensinados a ver a doença, não o ser humano. A
esses tanto se lhes dá se o que está à frente é pobre ou rico. Eles veem
papéis, números, exames, e estão treinados para receitarem as novidades da
indústria farmacêutica. Talvez até acreditem mesmo que o que precisa é mais
material, mais máquinas de exames e coisas assim.
A solução para toda
essa pendenga tem de ser estrutural. Mudar o modelo de desenvolvimento, mudar o
modelo de formação do profissional médico, investir cada vez mais na política
de acesso às universidades, para que jovens da classe trabalhadora possam
também ter a chance de formarem-se médicos, dentistas, psicólogos. Há que
reestruturar a lógica do sistema de atendimento nos postos de saúde. Coisas
simples como a manutenção de um médico durante todo o dia, atendendo as pessoas
que vão chegando. Nada de marcação de fichas. Chegou, tem médico, é atendido.
Pronto! Não há que ceder a chantagens de pagar salários astronômicos para que
um profissional vá trabalhar no interior ou em regiões inóspitas. Tendo bastante
gente formada, gente inclusive oriunda da classe trabalhadora, que conhece o
sofrimento do seu companheiro, as coisas vão se transformando naturalmente.
E se para que esse
modelo vingue for necessário, por enquanto, buscar profissionais fora do país,
já que a formação de um médico é cara e demorada, que venham aqueles que sabem
atuar dentro de uma política de saúde, não de morte. Que atuem no sentido de
ver a pessoa como um todo e não como um pedaço doente. Aqueles que compreendem
que uma criatura doente é um ser frágil, precisando de amparo e carinho.
Aqueles que já vivenciam um modelo de saúde onde o cuidado com a dor do outro é
a única medida. Se fora assim, que venham os cubanos, os africanos, os
espanhóis, qualquer um que possa começara a mudar esse triste cenário. Mas esse
médico tem de ser diferente, não pode estar contaminado com essa lógica da
morte, do lucro, do estar ajoelhado diante das farmacêuticas.
Todo aquele brasileiro
que um dia precisou de ajuda, e foi num posto, e ouviu o indefectível: “não tem
ficha”, sabe muito bem do que estou falando. Há que ter gente para cuidar da
gente. Muitas vezes, a presença de um médico nos apertando a mão, olhando nos
olhos e dizendo que tudo vai ficar bem é mais curativa que os sintéticos
produzidos nos laboratórios. As pessoas precisam de pessoas que as vejam por
inteiro. Logo, é o modelo de medicina ensinado nas escolas, aliado a uma
política de acesso ao curso, que precisa ser transformado.
*
Jornalista de Florianópolis/SC
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