Pivete
* Por Marco
Albertim
O vento soprou generoso no corpo magro de Mundinho. Ele sacudiu a cabeça
para a mecha do cabelo não tapar a visão dos olhos miúdos; há muito não os
cortara, e os olhos, no tamanho, não se deram conta de que àquela hora, ônibus
e automóveis disputam, inda que em marcha lenta, as duas vias de acesso à Ponte
do Limoeiro.
Em Santo Amaro, nos fundos do mercado público, a favela se deixa afundar
nas águas da chuva, mas não encrava no chão corrediço o cheiro de adubo vindo
das panelas cheias de sopa nas cozinhas do mercado. Mundinho, do lado de cá da
ponte, não entreteve o olfato no cheiro do tutano no osso empelicado no caldo
do feijão; se o fizesse, o juízo engendraria um festim, os olhos, no transe da
fome, dormiriam sem fechar as pálpebras. O sexto sentido, posto que os cinco
primeiros a urgência das ruas os embotara, preveniu-o de que Nô, a negra de
ancas e cinturas suspensas, já tinha na mão direita o cabo da colher de pau,
revolvendo a papa viscosa da sopa quente.
Depois que a porta do ônibus foi fechada, a de trás, ele deu prumo ao
corpo segurando com as mãos, uma das alças da porta. O vento lhe pareceu tão
amigo quanto a mão carnosa da negra Nô. O espanto do homem de cabelos brancos,
olhando-o, sentado junto à janela mais próxima da porta traseira, encheu-o de
coragem, convenceu-o de que surfar com a ponta dos pés no estribo da porta,
mais que uma dádiva, era próprio do equilíbrio de que só seu esguio corpo seria
capaz de dar conta. Gritou feito um atleta estreante, certo de que os passageiros,
inda que com dinheiro para pagar a passagem, acovardavam-se no conforto das
poltronas. Shiiiit... O grito de Mundinho foi ouvido na praça por duas moças
desatrelando bicicletas da Prefeitura, no aluguel rotin eiro do Cais do Apolo à
Avenida Cruz Cabugá, a da universidade que lhes concede vagas mediante o
pagamento da mensalidade. Virgem Maria...! O espanto que o ruído dos ônibus
encolhe na boca das duas, esconde a pressão que as nádegas largas fazem no
estreito selim de cada bicicleta. Mundinho dribla a velocidade do ônibus e dos
minutos, ri das moças acomodando, receosas de quedas, os quadris em cada selim.
Duas ruas ao fundo do mercado, a casa de um único quarto, inda que de
alvenaria, tem uma cor imprecisa na frente. As paredes da sala, do quarto e da
cozinha nunca foram rebocadas. Os tijolos foram acomodados na massa improvisada
de cimento, sem o cuidado do desbaste nos excessos entre o alinhamento
horizontal e o vertical; de modo que, se a velha Quitéria encostasse os ossos
na parede, logo ocultaria o incômodo com a ponta dos dedos magros, sem fingir o
quanto de agonia lhes infligiam os gumes do cimento tosco. As telhas da
coberta, quebradas umas, outras inteiras, ela nunca as espreitava. Não que
fosse velha de batismo, mas os quarenta anos entremeando fome com fartura de
comida sem variação de cor nem de proteínas, vergaram-lhe o lombo fino. A cabe
ça, mesmo podendo se mover para os dois lados, não tinha o apoio da mobilidade
necessária ao pescoço.
Quitéria parira aos vinte e cinco anos, sem ter um homem certo sob o
telhado desconjuntado; deu-se por vencida e pouco se importou quando viu seis
dedos em cada mão do filho. Mundinho cresceu segurando numa mão o copo de café
ralo, noutro, metade de um pão amarelo, às vezes dois, três dias guardado numa
prateleira sem louças, embrulhado num papel ungido do mesmo fungo vindo do
caibro mais próximo sob as telhas. Não tinha medo, Quitéria, que o pão ou o
copo escapasse das mãos do filho; os seis dedos, feito uma ferradura cujos
extremos se fecham, davam-lhes estabilidade.
Ela ajoelhou-se sob a imagem pequena de um Santo Antônio de gesso,
obtida na igreja do mesmo santo, ali em Santo Amaro. Balbuciou uma reza, grata
por ver o sol já posto, sinal de que Mundinho conseguira dar jeito no estômago
vazio com a sopa da negra Nô.
O ônibus subiu na cabeceira da Ponte do Limoeiro, desceu para
descortinar a compridez da Avenida Norte, tão familiar à agilidade dos cambitos
de Mundinho. O sinal fechou no cruzamento. Mundinho aproveitou para apear do
estribo, dar uma trégua ao peito ainda sem espessura em cada pé. Andou sem
pressa, certo de que a sopa da negra Nô nem tão cedo se veria livre do fundo
grosso, mastigável. O sinal voltou a abrir. As moças das bicicletas puseram-se
a pedalar. Mundinho, correndo, creu-se mais ágil que as estudantes com quadris
abundantes. As duas frearam, perdendo o equilíbrio ao mesmo tempo. A roda
dianteira da bicicleta vizinha à avenida, virou-se. O motoqueiro, simultâneo às
duas, inda que um pouco atrás, não evitou o choque com a roda diante ira da
bicicleta. As duas moças foram jogadas para a direita, sobre o chão arenoso à
frente do mangue na beira do rio Capibaribe. As moças não sofreram ferimentos,
inda que o susto empalidecesse o rosto de cada uma. Os carros pararam, não
houve choque da frente de uns com a traseira de outros. Os motoristas, buscando
culpados, logo distinguiram propósitos criminosos nas pernas do menino que se
atrevera a interromper o trânsito.
Mundinho esqueceu a fome, voltou para ajuizar a obra que, sem entender,
atribuíam-lhe a autoria. De volta para casa, entrou no mercado; olhou para a
negra Nô com o mesmo olho pedinchão. No mercado, àquela altura, seu nome
juntara-se ao palavrório ocioso nas mesas, com o apoio de garçonetes e
cozinheiras. A negra Nô não demorou a reparar no garoto sem botões na camisa,
olhando para ela. Achou conveniente ajuizar cada minúcia de seu mirrado corpo.
Encheu um saco plástico com restos da sopa. Com espanto estudado nos olhos,
deu-o a Mundinho.
- Toma, menino! Tu tem parte com o diabo.
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador
do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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