Confesso que traí
* Por
José Ribamar Bessa Freire
(Enviado
de Bogotá)
Sempre me lembro de uma velha amiga colombiana,
nascida em Antióquia, a quem eu não vejo há algum tempo. Por isso, me animou a
esperança de revê-la quando fui convidado pela Fundación Para el Fomento de
La Lectura (Fundalectura) para participar de uma mesa-redonda num Congresso
Internacional agora, no final de abril, em Bogotá, durante a Feira
Internacional do Livro.
Antiga
paixão, ai que tentação! Amor de amiga onde bate fisga, já diz o ditado. Depois
de tantos anos, agora de cabelos brancos, sem o ímpeto juvenil de outrora, eu
morria de curiosidade de saber se o tempo havia sido cruel também com ela.
Tinha a esperança de reencontrá-la inteirinha, tal qual havia permanecido na
minha memória, ali onde o relógio havia parado. Como seria essa redescoberta?
No voo da
Avianca que saiu do Rio, ia pensando nela. Na minha lembrança se sucediam as
imagens de quando nos conhecemos há muitos anos. Aconteceu de repente, por
acaso, no restaurante Entre pues em Chia, nos arredores de Bogotá,
durante a minha primeira visita a Colômbia. Fui apresentado a ela por uma amiga
comum, pesquisadora do Instituto Caro y Cuervo.
Amores que se foram
Foi amor
à primeira vista. Estou vendo-a como se fosse hoje. Nesse dia, ela estava
particularmente sedutora e - as feministas que me perdoem - apetitosa, bem
arrumada, vistosa, toda faceira, um piteuzinho. Trocamos olhares. Para
complicar ainda mais, o som do restaurante atacou Espumas, um pasillo
cantado por Garzón y Collazos:
- Amores
que se fueron, amores peregrinos, amores que se fueron dejando en tu alma
negros torbellinos.
Soube
naquele momento que algo de irreversível estava por acontecer. Tive a nítida
sensação de que meu olhar pidão era correspondido e que nascia ali uma paixão
ardente, fulminante. Ai, meu Deus, por que me deste alma tão vulnerável, tão
viciada em telenovela? Parece que a colombiana estava me esperando desde sempre
como a Morena esperava o Theo.
Mas o
galã, o idiota do capitão Theo, quando viajou a Turquia, traiu Morena seduzido
que foi por Lívia Marina. Essas viagens que quebram a rotina da gente acabam
estimulando as puladas de cerca com a descoberta de novas relações. Não sou
hipócrita, nem vou fazer suspense. Vamos direto ao que interessa. O que
aconteceu foi muito forte, deixou minha alma marcada, meu corpo tatuado.
Não é
fácil. Creio, porém, que o tipo de formação judaico-cristã que tive na infância
é que me deu coragem para fazer confissão pública tão constrangedora: sim, eu
traí e fui infiel, especialmente, atropelando uma relação tão sólida iniciada
no Peru em 1970. Sim, prevariquei também enganando compromissos afetivos
herdados em Manaus. Mea culpa, mea maxima culpa.
O mais
grave, no entanto, não é o que pode ter acontecido no passado e sim o que rolou
agora, em 2013, uma espécie de reconstituição - digamos assim - do crime.
Quando cheguei a Bogotá, não a vi no aeroporto, mas no dia seguinte não
resisti. Procurei-a. Escolhi para o nosso reencontro o mesmo cenário de quando
a conheci: o restaurante Entre pues em Chia. Pedi ao gerente para tocar Espumas.
- Igual
que a las espumas / que lleva el ancho rio, / se van tus ilusiones / siendo
destrozadas por el remolino./ Espumas que se van / bellas rosas viajeras...
Por
ironia, a música que seguiu foi um bambuco, cantado pelos mesmos Garzón
y Collazos que suspiravam: "Yo también tuve 20 anos". Então me
levantei e, com toda reverencia, extasiado, pude contemplar minha Dulcinea.
Fiquei em pé observando-a. Depois de tanto tempo, ela não mudou muito, pelo
menos na aparência. Constatei que alguma pele mole caía aqui e ali, mas a
fartura da carne ainda impressionava, da mesma forma que o aroma que exalava,
os adornos que a enfeitavam. Sua aparência exuberante contribuiu para que eu
prevaricasse outra vez. Quando vejam a foto, vocês me perdoarão.
Bandeja paisa
Quem é,
afinal, essa colombiana, campesina santanderiana, sabor de fruta madura,
tão sedutora, capaz de mexer ainda com um velho, que já não é mais assim tão
libidinoso? Talvez a resposta possa ser encontrada na poesia de Pablo Neruda,
em sua autobiografia Confesso que vivi, ou em um poema em que ele dá a
receita do caldillo de congrio, ou quando menciona o prato único:
"A
palavra pão se come; a palavra copo, se enche; a palavra nave navega".
Aproveitando
essa licença poética, posso agora revelar quem é a colombiana capaz de derrubar
qualquer virtude ou qualquer fortaleza. Ela responde pelo nome de Bandeja
Paisa. É um prato típico da culinária de Antióquia, um departamento ao
noroeste do país, que o governo colombiano tentou converter em prato nacional
com o nome mudado para bandeja montañera. O nome deriva do fato de que é
tanta comida que não cabe num único prato, só numa bandeja.
Na
verdade, são 14 diferentes pratos num só, e em alguns lugares acrescentam ainda
mais sete tipos de carne. Tem arroz, feijão, torresmo, chouriço, carne moída,
tomate, abacate, hogao - uma espécie de refogado com cebola, pimenta,
orégano, açafrão, além de arepas - massa de milho moído assada em folha
de bananeira e patacón - banana pacovã verde, cortada em rodelas fritas
e depois amassadas e refritas, polvilhadas com queijo ralado. Tem até ovo
frito. Razão tem o humorista Stanislaw Ponte Preta quando diz:
-
Qualquer prato no mundo melhora se for enfeitado por cima com um ovo frito.
A bandeja
paisa é uma delícia épica, uma bomba do bem, mas uma bomba. Não é qualquer
um que pode enfrentá-la, é preciso estar preparado psicológica e gastricamente
para o combate amoroso, porque ela derruba e aniquila os fracos, mas se você é
aguerrido e valente, sai fortalecido do embate seguindo a receita cantada por
Gonçalves Dias na Canção dos Tamoios:
- "Se
o duro combate, os fracos abate, aos fortes, aos bravos, só pode exaltar"
.
O
cardápio do restaurante oferecia variedade de pratos colombianos, peruanos e
até algo da Amazônia colombiana. No entanto, enfeitiçado pela bandeja paisa,
traí - confesso que traí - o ceviche, o seco de cordero, o aji de gallina, o
pirarucu, o tambaqui na brasa, o pacu e o jaraqui. Comi, com alegria e
entusiasmo, esse prato intraduzível para outras línguas. Günter Schlamp,
conferencista que participou do Congresso, tentou traduzir bandeja paisa
para o alemão. Inutilmente. Nem tudo aquilo que o paladar saboreia com uma
língua pode ser traduzido para outra língua.
Os
franceses que me perdoem, mas o cassoulet deles não chega nem aos pés da
bandeja paisa, cujo equivalente, no Brasil, seria a nossa feijoada, a
tal ponto que se aplica aquilo que Stanislaw Ponte Preta disse do nosso prato
nacional:
- Bandeja
paisa completa só com ambulância na porta.
Confesso
que traí e aviso que vou trair de novo, quando for a Manaus. Marquei um próximo
encontro com a bandeja paisa no restaurante colombiano La Finca,
que fica no bairro Dom Pedro I, atrás da cavalaria do Rocam. Ele é citado numa
tese de doutorado, em preparação, a ser defendida na Universidade Federal
Fluminense por Lúcia Puga, que coletou ricos dados sobre a migração colombiana
no Amazonas. Arrematarei com um panela molida ou um dulce macho.
Bandeja
paisa ao som de Garzon y Collazos é algo antológico. Inesquecível. Funciona
como um bajativo. Aos donos do La Finca, o casal colombiano Jorge
e Monica Molina, já estou encomendando desde já que caprichem no som:
- Ya
nunca volveran / las espumas viajeras / como las ilusiones que te depararon
dichas pasajeras.
*
Jornalista e historiador
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