segunda-feira, 8 de abril de 2013


O tempo em rédeas

* Por Daniel Santos

Entre um e outro compromisso, fui, afinal, à casa de meu pai para honrar uma visita há meses prometida e encontrei-o na calçada varrendo sem presa, meticuloso como um chinês, dono do próprio tempo.

Àquela hora da manhã, muitos se apressavam a caminho do serviço, mas meu velho ignorava o curso ansioso das horas, num desprezo inabalável por essa velocidade sem cabresto que nos arrasta à sujeição.

Nos estapeamos amistosamente nas costas, entramos, e me bastou  uma olhada na sala para perceber que, ali, o tempo trotava com recato, sem a insolência da autonomia, fiel a meu pai como um velho pangaré.

De fato, ele mantinha tudo em rédeas. E varria. Varria a casa, varria o quintal, varria a calçada ... Livre de toda expectativa, voltava-se para si, adonava-se da própria vida para lhe impor ordem, soberano do instante.

Nos servimos de café e ele saiu ao quintal, enquanto me intrometia pela casa onde nascera e vivera até a juventude. Tudo igual, tudo nos mesmos lugares e, na cabeceira, a foto do casamento com mamãe.

Diante da solidez do velho, me apequenava a sujeição a horários que constrangem o cotidiano, mas ele mostrou sua caixa de ferramentas e, como se adivinhasse meus pensamentos, disse “tudo tem conserto”.

Foi um alívio. Depois almoçamos e, ao nos despedirmos no final da tarde, vi que a calçada se sujara novamente. Já longe, acenei a ele, mas não me respondeu: entretinha-se a varrer, a varrer sem pressa nenhuma.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. O mais curioso é que todos temos a capacidade de trazer o tempo assim, obediente, mas temos o comportamento de manada: corremos para não sei onde, indo buscar não sei o quê. Uma gostosa leitura que me fez lamentar por já ter terminado. É que tinha me esquecido dos sete parágrafos de todas as histórias, Daniel.

    ResponderExcluir