O
guerrilheiro e a hospedeira
* Por Marco
Albertim
O
quarto não estava bem escuro, mas o suficiente para alguém mover-se, sem
desconfiar de que outra pessoa o espreitasse. A luz poderia ser acesa, e dar
conta de escaninhos não imaginados. Duas camas, uma junto à parede da frente da
casa, e outra no extremo oposto, junto à porta, sempre fechada, que dava acesso
ao quarto vizinho.
Ao lado de cada uma das portas
dos seis quartos, o corredor com a luz acesa; dir-se-ía a sentinela da dona da
pensão, que a mantinha acesa das cinco da tarde às cinco da manhã seguinte. O
casarão de um só pavimento, com mais quartos nos fundos do quintal, supunha-se
ser gerido por uma mulher de rosto rugoso, conforme a aparência sombria da rua
com casas contíguas, ornadas na frente, na calçada, por fícus nunca podados ,
de galhos caídos e troncos com musgo.
Diga-se logo que a casa de
hóspedes era gerida por uma mulher aparentando trinta e cinco anos, no máximo
quarenta bem fornidos graças à pujança dos cabelos afogueados sobre a pele
lustrosa cor de trigo.
Adroaldo chegara na noite anterior. A hospedeira, cujo nome a brandura de sua boca não se dera o trabalho de declinar, deixara-o intrigado; por olhá-lo sem viés oblíquo nos olhos verdes, sem rebuços na pele lisa dos ombros e braços nus. Dissesse-lhe o nome, pensou ele, seria mais que um obséquio da casa, seria uma confissão. Assim, ela indicara o quarto da frente onde ele faria companhia ao hóspede da outra cama; pagaria menos por ser um quarto coletivo. E, o que o aliviara, não pediu para ele preencher a ficha de hóspede.
Quando o outro hóspede abriu a
porta do quarto com a chave que a hospedeira lhe dera, encontrou-o dormindo;
entre o conforto do colchão de capim ainda duro, e o juízo urdindo os pelos
invisíveis nos quadris da hospedeira.
Foi só na segunda noite que ele
espreitou para o tamanho, para os cantos do aposento. Não quis se identificar
para o outro hóspede, para não ter que responder a perguntas. Deu as costas
para o lado da cama do hóspede. Três metros separavam uma da outra. Súbito, da
fresta da porta do aposento vizinho, veio um odor espesso de sabonete cuja
espuma não se deixara diluir no jorro da água. A densidade do perfume, por
certo acumpliciada com o suspiro de cada um dos poros por onde ele se
imiscuíra, tonteou o juízo ainda vadio de Adroaldo. No caso dele, vadiar com o
juízo antes de embotar os sentidos para o sono, seria mais que dormir, seria
zombar de quem atentara contra os seus cinco sentidos. Adroaldo apurou o
olfato, juntou-o ao apetite do paladar de algum tempo sôfrego... Sôfrego e
imaginoso. Levantou-se da cama, sentou-se no lado contíguo à porta; abaixou-se.
O dorso, que há muito se inclinara para um ato de libidinagem rasteira, sentiu
um susto convulso só controlado pelo delírio na medula espinhal.
Da obscuridade de seu nicho,
Adroaldo distinguiu a hospedeira tirar de seu corpo tenro, a toalha felpuda com
que se enxugara após o banho no banheiro. A cor cremosa do tecido, a mesma de
sua pele, cobriu-se de tons acetinados quando foi jogada na colcha branca da
cama de casal. Nunca um objeto se tornou tão lascivo, ao se mostrar depositário
de segredos de um corpo de mulher. Ela cantarolou no mesmo ritmo e tom com que
retomou a toalha para absorver a umidade dos cabelos; sob as orelhas, os
lóbulos balançando, trepidando sob os toques dos dedos frígidos.
Ela vestiu uma camisola curta,
transparente; e para se manter no figurino das fêmeas que têm na noite a
lembrança ou os urdumes de como se deixarão tocar por mãos calosas de fome, o
organdi azul da camisola deixou-se vazar pela tibieza das paredes frias do
cômodo.
Ela apagou a luz do quarto,
deixou a do corredor acesa para alumiar o rastro de seus passos mudos. O
perfume encheu as paredes de uma suspeita tão vã quanto prenhe de promessas.
O delírio de Adroaldo foi interrompido para dar lugar ao êxtase com que zombava, mudo, de quem quase pusera as mãos em seu dorso moço para amortecer-lhe o ímpeto de antever o fim do banquete dos generais.
O outro hóspede entrou no quarto,
entrou sem suspeitas. Na rua, uma coruja grasniu no cimo de um fícus. A
hospedeira creu-se dona de seus domínios. Adroaldo convenceu-se de que a
história logo daria um supetão e ele diria sem medo, à hospedeira, seu nome
acrescido do currículo de guerrilheiro que escapara das matas do Araguaia.
Na noite seguinte, depois de
passar o dia inteiro sentado numa praça deserta para não ter que conversar com
alguém da hospedaria, voltou para o quarto e esperou o perfume que enregelara
seus sentidos. Sentiu-o. Ela, antes de apagar a luz do quarto, olhou para a
fresta da porta, sorriu na direção da altura em que supunha estar os olhos do
hóspede mais moço.
De manhã, quando Adroaldo abriu a
porta para sair, ouviu a mulher dizer atrás dele:
- Espere. Venha tomar café
comigo.
*Jornalista e escritor. Trabalhou
no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos
para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional
de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho
Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas
“Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de
contos e um romance.
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