sábado, 12 de janeiro de 2013

Tragédia carioca

* Por Celamar Maione

O sangue que saia do meu nariz se misturava ao asfalto quente da Avenida Presidente Vargas de uma sexta-feira, ás 5 horas da tarde. Eu não conseguia mover uma parte do meu corpo. Não sentia nada. O motorista do carro que me atropelara andava de um lado para o outro, com a mão na cabeça, gritando, desesperado:
-Eu não tive culpa! Ele apareceu de repente na minha frente!

Um burburinho se formou ao meu redor. Eu olhava aquelas pessoas se espremendo em volta de mim. Minha vontade era gritar que saíssem todas dali e me deixassem em paz. Porém, não conseguia articular uma palavra. Cada um dizia uma coisa:
- Leva logo para o hospital. A ambulância vai demorar.
- Alguém chamou a ambulância??
- Não pega nele, deixa como está. Ele pode ter quebrado alguma coisa.

Era uma gritaria. Uma mistura de vozes. Tinha de tudo ali, imaginei. Boys, empresários, advogados, donas-de-casa, idosas, até crianças.
-Que povo curioso esse!!

E tudo isso por causa de quê?

Dela. Da minha Dalva. Que mulher linda! Foi a minha desgraça. Bem que meu amigo Tony me avisou.

A primeira vez que vi a Dalva foi num ensaio da Mangueira. Eu estava perto do bar, tomando uma cerveja, quando avistei aquela morena de parar até bateria de Escola de Samba. Filmei todos os movimentos dela. Tony notou meu entusiasmo e foi logo dizendo:
- Cara, não se empolga não. Essa aí só gosta de gente com dinheiro e você é um duro. Tira o olho.

Mas cadê que eu conseguia? A morena era de arrepiar. Fiquei o ensaio todo encarando aquele corpo que se movia como uma bailarina no palco do Municipal.

Já passava das 3 da matina quando Tony resolveu me puxar para irmos embora. O safanão me tirou daquele torpor que eu me encontrava por causa da Dalva:
-Cara, acorda, tira essa morena da sua cabeça. Vamos que eu tenho que dormir. É domingo, mas eu trabalho.

Antes, porém, passei perto da Dalva e com a cara e a coragem dei meu telefone pra ela e baixinho falei no ouvido da morena:
- Me liga.

Foram dois dias intermináveis. Esperava a Dalva me ligar, como um cachorro faminto que espera um pedaço de carne. Quando o telefone tocou, eu nem acreditei. Era a Dalva. Aquela voz suave e macia encheu meu coração de amor. Minhas pernas tremiam, meu coração batia acelerado. Combinamos sair naquele dia mesmo, de noite. Demorei mais de meia hora no banho. Enchi meu corpo com uma colônia nova, especialmente comprada para o encontro com a Dalva. Peguei meu chevetinho velho e parti para a casa da morena, que morava no Irajá. Ela estava mais bonita do que naquele dia na Mangueira. O vestido preto, colado ao corpo, fazia até padre sair do sério.
- Oi gato, e aí, tudo bem com você?

Eu olhava para ela impressionado. Não estava acreditando que aquela morena de parar o trânsito estava bem ali, sentada no meu carro. Fomos até a Praia de Copacabana. Ela queria ver o mar. Disse que adorava o mar. Lembrava da infância, quando ia à praia com os pais e os três irmãos. Ficamos ali, conversando nem sei quanto tempo. Ela me contou que era recepcionista num escritório de advocacia na Presidente Vargas. Eu falei que trabalhava com computadores, mas que ainda não dava para tirar uma grana legal.

Quando vi, já passava de uma da manhã. Dia de semana. Dei um pulo:
- Dalva, tenho que acordar hoje ás 6 da matina para pegar no batente. Vamos sair outras vezes?

Ela balançou a cabeça afirmativamente. No sábado, combinamos de ir à Mangueira.

Quando Tony me viu chegando com ela, falou no meu ouvido:
- Pô , nem acredito, pegou a morena. Mas olha, cuidado! Isso é chave de cadeia!!
- Chave de cadeia nada. Ela é um doce, um amor de mulher, você está é com inveja.

Saímos dali e fomos para o motel. Minha primeira vez com Dalva. Na cama, a mulher era um avião. Nossa, me deu uma canseira daquelas. Passamos o domingo juntos. Eu estava completamente apaixonado. Só via a Dalva. Só falava na Dalva. Queria chegar em casa, de noite, depois do trabalho, para ligar para a Dalva. Durante dois anos me senti no paraíso. Devoto de São Jorge, passei a fazer promessa ao santo para me casar com a Dalva. Nas conversas de botequim, depois do expediente, o assunto era um só: Dalva.

Os amigos pegavam no pé:
- Cara, não acredita em mulher. Controla esses delírios. Daqui a pouco, a morena te dá um fora, e você fica aí, chupando o dedo.

Não faltava gente do contra:
- Vai ficar é vendo navio. Segura sua onda.

E não deu outra. Parecia até praga dos mané. Um fim de semana, liguei para a Dalva e ela disse que não podia sair:
- Não vai dar amor. Tô cheia de dor de cabeça...
- Então eu vou aí. Lhe faço um cafuné.
-Não, amor, não vem não. Eu vou tomar um analgésico e cair na cama

Sabe como é homem apaixonado. Desconfiei que aí tinha coisa. Peguei meu chevetinho e fui até Irajá. A mãe me falou que a Dalva não estava. Fiquei ali fazendo plantão, até ela chegar. Cinco da matina, me chega a Dalva, ao lado de um coroa, num Astra. Meu coração partiu ao meio. Meu sangue subiu. Minhas pernas bambearam. Saí do carro, o Astra foi embora e fiquei frente a frente com a minha Dalva:
- Qual é? O que significa isso? Me enganando? Me colocando um par de chifres?

A morena ficou branca. Tentou se explicar. Brigamos ali mesmo, no meio da rua. Mandei a mão na cara da Dalva. Entrei no carro e parti com tudo. Me senti o homem mais humilhado do mundo.

Depois deste episódio, tentei falar com a Dalva. Mas ela não atendia o telefone. Queria pedir desculpas. Acabei indo até o escritório em que ela trabalhava, na Presidente Vargas. Cheguei lá, toquei a campainha, foi ela que atendeu. Estava sozinha. Fui entrando. Dalva me olhou nos olhos e foi firme:
- Eu não quero mais nada com você. Por favor, não faz escândalo. Aqui é meu trabalho. Vai embora.

Começamos a discutir. Ela me colocou no chão. Me chamou de otário para baixo. Disse que eu era um pobretão e que só queria curtir comigo, mas que tinha acabado. O sangue foi subindo. Minha cabeça começou a girar. De repente, vi em cima da mesa da Dalva uma faca, ao lado de uma laranja. Peguei. Ela gritou:
-Tá maluco? O que você vai fazer? Ei!!!

Minha vista turvou. Não vi mais nada. Acho que foram mais de 10 facadas. Peguei o elevador e saí desnorteado pela Presidente Vargas. O carro me pegou e cá estou eu, no meio desta multidão curiosa. De repente, o barulho da ambulância chegava mais perto. Ouvi os transeuntes gritando:
-Chama, diz que é aqui. A ambulância chegou.

Eu queria falar alguma coisa. Não conseguia. Acho que estava em estado de choque. Queria saber se a Dalva estava viva, se tudo não passava de um terrível pesadelo. Ela estava lá, jogada num daqueles escritórios da Presidente Vargas, e eu ali, estirado na Avenida Presidente Vargas.

Os médicos me pegaram com cuidado. Colocaram-me na maca. A roda se abriu. Eu olhava para todos e já não enxergava nada. Finalmente me ajeitaram na ambulância. Escutei um homem, todo de branco – devia ser médico, enfermeiro, sei lá – dizendo para o outro:
- Acho que esse aí tá mal. Não anda mais.

Desesperei-me. Mas não tinha reação. Resolvi fechar os olhos. Pensei em São Jorge. Quem sabe se ao abrir os olhos eu não estaria ao lado dele? O motorista da ambulância ligou a sirene. O carro saiu em disparada, abrindo espaço no trânsito caótico da Avenida Presidente Vargas.

Tudo voltou ao normal. Carros passavam, transeuntes também andavam apressados. Nem parecia que ali, cinco minutos antes, uma história de amor terminara em tragédia.

* Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Atualmente, é Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

Um comentário:

  1. Abandono, desprezo e tragédia aparecem juntos em qualquer ordem. Morte e deficiência. O amor não merecia isso.

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