segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Estratégia de fuga

* Por Daniel Santos


Ainda hoje, quando o vento sacode as roseiras e arremete que nem touro contra as paredes da casa, a família chega à janela a ver se uma lufada mais forte traz de volta o velho que desapareceu sem deixar pistas.

O céu se enche, então, de poeira e só de vez em quando uma folha de jornal passa como gaivota tablóide de asas retintas, solitária, desgarrada do bando, com notícias amarrotadas de ontem, mas nada a respeito dele.

Dizem os vizinhos que o velho perdeu o medo das ruas e, de início, caminhava até a padaria da esquina. Depois, aventurou-se mais e, apesar das advertências, prosseguiu, tomou gosto pelas distâncias, evadiu-se.

Onde estiver, estará melhor do que na casa da família, onde o esqueciam pelos cantos como a um traste sem serventia, embora o neto o acudisse com mimos e atenções até ensinar-lhe toda a estratégia da fuga.

Numa tarde de ventos moderados, o garoto encontrou o avô nos fundos da casa. Sentado ao alpendre, de frente para uma ribanceira, seu queixo caía e a pele sobrava por todo o corpo – era o retrato da desistência.

Mas o garoto chegou a tempo. Com um canudo que ele fez com o talo do mamoeiro, mais uma caneca cheia de água e sabão, ensinou o que o velho há tempos esquecera: fazer bolinhas coloridas e soltá-las por aí.

De início, ele relutou, sentiu-se meio ridículo mas, como ninguém havia por perto e o neto insistisse, fez a primeira bola. Ao soltá-la no espaço, o menino apontou: “Olha, tem uma janelinha, uma janelinha!”

Sim, era verdade. Havia uma janelinha. Uma janelinha para escapar, para entrar no mundo onde tudo era leve e macio, sem as asperezas que a velhice reserva a quem coloca a condução da sua vida em mãos alheias.

Os dois olharam-se com inédita cumplicidade e um quê de travessura como se tivessem a mesma idade. Depois, o velho tomou a canequinha e saiu à rua soltando bolinhas de sabão como na meninice.

Muito se divertiu quem o observava, e ele (insuspeitavelmente) mais ainda. Logo, ganhou o mundo e lá adiante soprou a maior bola que pôde. A tal janela convidava. E ele entrou de vez, sem qualquer cerimônia.


* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

2 comentários:

  1. Tenho assistido a velhice de meu pai, sua doença, seus pequenos surtos e o seu olhar divertido ao olhar para o seu neto que embora somente balbucie
    já olha o avô com uma divertida e amorosa cumplicidade.
    Lindo Daniel.
    Abraços

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  2. Um poema de amor, e respeito, cheio de imagens poéticas que nos leva ao cerne do Mal de Alzheimer.
    Destaco:"O céu se enche, então, de poeira e só de vez em quando uma folha de jornal passa como gaivota tablóide de asas retintas, solitária, desgarrada do bando, com notícias amarrotadas de ontem, mas nada a respeito dele". Lindo!

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