segunda-feira, 7 de junho de 2010




O crachá e a educação

* Por Renato Manjaterra

Você já viu como amansa cavalo novo? Uma vez eu vi um peão amansando um cavalo numa roça. O cavalo já amarrado andava em círculos no curral com uma ponta de corda deitada sobre o lombo.

Aquilo era só uma fase do processo, de educação do cavalo. Isso de ele sentir que tem uma corda nas costas dele.

O cavalo, zerado, não sabe o que é aquilo, e pula até que não haja nada em suas costas. Eu não vi essa fase, quando eu cheguei o cavalo só trotava, não sei se cansado ou acostumado já, com a corda sobre as costas.

Muitos anos depois eu ainda me lembrava da aflição do cavalinho com um par de metros de corda de sisal pesando sobre o jovem lombo. Acho que ele no fundo já tinha até entendido onde aquilo iria parar. “Deixa eu pular pra essa cordinha nem parar aqui! Porque hoje é uma cordinha solta, amanhã tem uma carroça amarrada no meu lombo, um sol e uma ladeira!”

Aquela cordinha na coluna tem significado. E se a cordinha é leve, o significado não é.
É a educação. A educação dá voltas mais e mais legítimas e nobres, mas tem esse exato significado. Todo esse conjunto de normas, nexos causais, combinados e conteúdos não são mais do que ferramentas de amansar gente. Amansar espíritos, até mesmo para que eles cumpram aqui uma quadra menos dolorida.
..
Fui entender mais um pouquinho daquela cena que gravou tão forte em mim quando entrei nesse emprego. Aqui minha criatividade foi critério para a escolha, mas só isso mesmo. Estava no edital que a criatividade era qualidade e assim foi feito no concurso, principalmente nas fases não objetivas.

Já aqui dentro, a criatividade serviu sempre muito mais para criar problemas do que desempatar qualquer jogo. Tipo: era importante o candidato ter, mas é importante o empregado saber guardar. E há vários métodos para ajudar o empregado a guardar sua criatividade para o sábado. Um deles é a cordinha.

Foi numa sexta feira à tarde que eu percebi esse caráter educativo do meu crachá. Acho que saí do escritório com a cena do cavalo na cabeça, quando tirei o crachá do pescoço. Tinha uma colega no ponto de ônibus com quem eu cheguei a comentar quando tirei o crachá: “Olha como se alivia 300 quilos das costas rapidinho”.
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É uma cordinha de nada, que segura um cartãozinho de o que? Dez gramas? Nem isso. Só mesmo o suficiente para que a gente consiga saber se está ou não de crachá sem olhar para baixo. Conscientemente a gente nem sente, mas se atentar a gente sente o crachá pendurado.

Esse dado (tem alguma coisa pendurada no meu pescoço) parece que não ocupa nem espaço na cabeça, mas é permanente. Durante as oito horas da nossa jornada o nosso cérebro registra que a gente está de crachá.

Mas a gente não nasceu de crachá.

Enquanto a gente está com aquela sensação quase imperceptível de uma cordinha no pescoço, a gente não consegue esquecer de verdade de duas coisas: A gente não consegue esquecer daquilo que está escrito no colar: minha empresa, meu nome, minha função, minha matrícula e uma foto com o cabelo diferente; e muito menos daquilo que não está escrito: aquela cordinha dá ao nosso dono (durante as oito horas) o direito de substituir a cordinha por um fardo de cem quilos de feno.

E o que é a educação senão aquilo que faz a gente trotar manso em círculos enquanto se acostuma com cordinha?

* Jornalista e escritor, webdesigner, colunista esportivo, pontepretano de quatro costados, autor do livro “Colinas, Pará” com prefácio do Senador Eduardo Suplicy, bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCAMP, blog tp://manjaterra.blogspot.com

5 comentários:

  1. Tenho um amigo que nada contra a maré.
    Ele é inteligente, capaz e extremamente
    profissional, mas jamais permitiu que
    colocassem uma "cordinha" nele.
    Sempre foi assim desde que o conheço, hoje o
    entendo e respeito a sua escolha.
    Abração

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  2. Leva janta, Nubia! Não deixa seu amigo sem janta, com esse frio, tadinho...

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  3. Fala ManjaTerra.
    Se preocupa não, o cara é "safo".
    E se ele precisar, "tô" junto.

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  4. Há muitas pessoas que não suportam nem o começo do treinamento. Os rebeldes, os discordantes, os jamais domesticados. Você é um deles.

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  5. Ser safo é contingência de quem prefere ter a corda sob os pés.
    Tava sentindo sua falta, Mara! Obrigado moça, já fui... to véio e manso.

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