segunda-feira, 7 de junho de 2010




Acendam as luzes para Barbosa

* Por Eduardo Murta

Mãos grandes, negras, apartam uma ponta de choro naquele fim de manhã. Os olhos seguem grudados na tela da tevê. É, creiam, pleno 2009, um aparelho ainda em preto e branco. Lá estão o chuvisco e, volta e meia, as imagens virando um balé de distorções. Ele segue alheio a isso, porque o que deseja, no fundo, é não mais que ter a confirmação da notícia.

Os pôsteres envelhecendo à parede dão a conta de que o futebol, em alguma medida, atravessara sua vida. E que ficara estendido ali, num canto, como fosse um animal em lenta decomposição. Era cenário triste. Xícaras por lavar, jornais empilhados, a antena marcada pelas digitais de mosquitos, um rádio sempre fora de sintonia. E a maldita janela, pedindo conserto fazia anos, batendo em jeito irritante. Embora ele sequer a notasse.

Está hipnotizado é pelos pronunciamentos televisivos. Cruza os dedos, torcendo. Reza baixinho. E vai explodir em segundos, logo que for anunciado o Brasil como sede da próxima Copa do Mundo. Louvado seja. Era chance de se reencontrar com seus demônios e dizer que não os queria mais morando na varanda. Tanto tempo depois, mas ainda crendo que era possível dar remendo àquela vida posta em cacos.

Tudo havia começado num 16 de julho de 1950. Maracanã. O Brasil, sem que a bola rolasse, declarado campeão diante de um Uruguai coadjuvante. Faltou combinar com a história. Faltou combinar com os jornais da época. Faltou combinar com o público. Porque eram milhares em contagem regressiva para o apito final do juiz. Era aquilo, julgavam, que os separava da celebração.

E este homem virou refém das circunstâncias. Não dormia, desde então, uma só noite sem que pensasse no imponderável. Viu as rugas se avizinharem, os netos se avolumarem, e aquele sonho caducando em seu coração. Conserto para o que estava feito não havia, mas existia remédio para o porvir. Por isso, resistira, ainda que muitos considerassem que estivesse morto fazia tempos.
Mais que isso: julgavam que morrera naquele julho de 1950, junto à ilusão de muita gente. Não, não, não... Hibernara. E se enxergava agora diante de uma chance peculiar de redenção. Ver o Brasil erguer a taça em seus gramados e pulverizar fantasmas em praça pública. Era preciso fazê-lo, como catarse, e se apresentaria para a missão. Buscou os paramentos no armário.


Cheiravam a mofo, naftalina. E azar se tinham as bordas carcomidas.

Naquela tarde, no Maracanã, o porteiro contornou dificuldades com zelo diante do velhinho fantasiado de goleiro. Queria entrar de qualquer forma. Bradando que não faltaria ao time em campo. Os policiais, convocados, evitando dar-lhe rumo. Nutriam piedade. Daí, diretor, zelador, seguranças e até faxineiros baixaram na portaria, tomando a rota do alvoroço. O sujeito irredutível. A Seleção Brasileira precisava dele, e não se recolheria nessa hora.
A situação já beirava o nonsense, quando surgiu assim do nada um veterano entre os funcionários. Olhou acima, abaixo. Conferia, por Deus, conferia! Mas deveria estar longe de ser verdade. "É o senhor mesmo, Seu Barbosa?" Era. Reconhecido, meninamente se alegrou . Estendeu a mão, pedindo passagem. "Mas o senhor já não morreu?". Ele estremeceu.
Fez um recuo. Veio um breve silêncio. E foi se desmanchando, se convertendo em pequenas bolhas de sabão. Nem lhe sobrou tempo a que dissesse. Só tinha ido ali para tentar defender o chute do uruguaio Ghiggia, aquele que calou o Maracanã. Dessem outra chance, seguro, evitaria aquele gol. E estaria livre para sonhar com outro sonho que não o do homem que ficou ali olhando a rede, a bola, a bola, a rede... Até que todas as luzes se apagassem.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

3 comentários:

  1. Como torcedora tento entender os sentimentos
    que afloraram na época, mas o desenrolar disso não.
    Tanta sujeirada, tantos escandâlos, assassinatos
    que ficaram impunes...tudo isso caiu no esquecimento. Mas a falha do goleiro ainda
    ressoa...
    Bela homenagem Eduardo.
    Abraços

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  2. Valeu, Núbia. Acho que não existe tempo para anularmos o que há de amargo e injusto na história. Um abraço

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  3. Uma doce redenção ao homem, ao fato, ao infortúnio. É como carregar um defunto que não é só nosso. Aqui foi feita justiça e Barbosa poderá enfim viver em paz.

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