
Passando a limpo
* Por Risomar Fasanaro
Em alguns momentos da vida sinto que preciso parar e passar a vida a limpo. Faço uma limpeza nos meus guardados, tanto materiais como espirituais. Olho pasta por pasta de textos, de recortes de jornais, cartões, bilhetes, ingressos de teatro, de cinema, para escolher e jogar fora tudo que já não tem mais sentido em minha vida.
É uma tarefa difícil e, quase sempre, termino por guardar novamente 40% do que pensei jogar fora. Havia decidido que desta vez seria radical; achei que estava pronta para jogar no lixo tudo que não me diz mais nada. Reli textos que havia escrito havia dez, quinze anos, e que tinham ficado na última limpeza.
Tenho a impressão de que quando a gente joga fora o que é exterior na vida da gente, provoca uma limpeza interior. Chego a esta conclusão ao perceber o quanto mexem comigo essas arrumações.
Encontrei escritos que me revelaram a diferença que existe entre a que sou hoje e a que fui. Alguns textos me pareceram tão estranhos à minha forma de pensar atual, que só acreditei serem meus por trazerem minha assinatura.
Crenças que defendi com unhas e dentes e nas quais hoje já não acredito, foram para o lixo. Melhor não ter essas lembranças que me levam a sentir o tempo que desperdicei sem escrever, defendendo essas crenças. Rancor? Não. Nenhum. Apenas descrença. Apenas uma forma de diminuir a tristeza que a gente sente diante das decepções.
Quando sentia que não teria coragem de jogar alguma revista, algum texto fora, pois “não conseguiria viver sem ele”, pensava: sim, posso. Se eu sobrevivi após a morte ou a separação de algumas pessoas tão queridas, e que eu pensava jamais sobreviver sem elas, posso me desfazer dessa revista, dessa apostila, desse texto...
Foi difícil, confesso. De alguns desses guardados veio o perfume que usava em alguma ocasião ligada àquele texto. Sem querer, me veio à lembrança a voz de Chico cantando Iolanda, enquanto eu amassava uma poesia.
É interessante como essa faxina provocou uma revolução em mim. Remexendo em tantas lembranças, eu, que durante toda a vida sempre tive pressão baixa, de repente senti uma pressão na nuca e centenas de luzes à minha volta. Conhecia, de ouvir falar, esses sintomas – minha pressão arterial subiu e achei que era hora de parar. Tomei um chá de cidreira, meditei durante alguns minutos e melhorei.
As lembranças nos levam a perceber a ação que o tempo exerce sobre nós. Sim, o tempo e os reveses que passamos na vida deixam marcas, rugas e cicatrizes não apenas em nosso exterior, mas, e principalmente, na nossa alma.
Ainda não terminei a tarefa, mas já me sinto leve e tranquila. E assim como limpo este cômodo onde escrevo e guardo meus livros, também minha alma se prepara para o novo. O que há de vir e ainda não sei...
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
* Por Risomar Fasanaro
Em alguns momentos da vida sinto que preciso parar e passar a vida a limpo. Faço uma limpeza nos meus guardados, tanto materiais como espirituais. Olho pasta por pasta de textos, de recortes de jornais, cartões, bilhetes, ingressos de teatro, de cinema, para escolher e jogar fora tudo que já não tem mais sentido em minha vida.
É uma tarefa difícil e, quase sempre, termino por guardar novamente 40% do que pensei jogar fora. Havia decidido que desta vez seria radical; achei que estava pronta para jogar no lixo tudo que não me diz mais nada. Reli textos que havia escrito havia dez, quinze anos, e que tinham ficado na última limpeza.
Tenho a impressão de que quando a gente joga fora o que é exterior na vida da gente, provoca uma limpeza interior. Chego a esta conclusão ao perceber o quanto mexem comigo essas arrumações.
Encontrei escritos que me revelaram a diferença que existe entre a que sou hoje e a que fui. Alguns textos me pareceram tão estranhos à minha forma de pensar atual, que só acreditei serem meus por trazerem minha assinatura.
Crenças que defendi com unhas e dentes e nas quais hoje já não acredito, foram para o lixo. Melhor não ter essas lembranças que me levam a sentir o tempo que desperdicei sem escrever, defendendo essas crenças. Rancor? Não. Nenhum. Apenas descrença. Apenas uma forma de diminuir a tristeza que a gente sente diante das decepções.
Quando sentia que não teria coragem de jogar alguma revista, algum texto fora, pois “não conseguiria viver sem ele”, pensava: sim, posso. Se eu sobrevivi após a morte ou a separação de algumas pessoas tão queridas, e que eu pensava jamais sobreviver sem elas, posso me desfazer dessa revista, dessa apostila, desse texto...
Foi difícil, confesso. De alguns desses guardados veio o perfume que usava em alguma ocasião ligada àquele texto. Sem querer, me veio à lembrança a voz de Chico cantando Iolanda, enquanto eu amassava uma poesia.
É interessante como essa faxina provocou uma revolução em mim. Remexendo em tantas lembranças, eu, que durante toda a vida sempre tive pressão baixa, de repente senti uma pressão na nuca e centenas de luzes à minha volta. Conhecia, de ouvir falar, esses sintomas – minha pressão arterial subiu e achei que era hora de parar. Tomei um chá de cidreira, meditei durante alguns minutos e melhorei.
As lembranças nos levam a perceber a ação que o tempo exerce sobre nós. Sim, o tempo e os reveses que passamos na vida deixam marcas, rugas e cicatrizes não apenas em nosso exterior, mas, e principalmente, na nossa alma.
Ainda não terminei a tarefa, mas já me sinto leve e tranquila. E assim como limpo este cômodo onde escrevo e guardo meus livros, também minha alma se prepara para o novo. O que há de vir e ainda não sei...
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Tarefa difícil Riso.
ResponderExcluirSão tantos fragmentos e
tantas lembranças. Mas
se elas perdem o sentido
viram entulho.
O alívio que sentimos ao nos desfazermos
delas, nos resgata para o novo.
Coragem e não tenha medo do que há
por vir.
Adorei o seu texto.
Beijos
Risomar, o desapego faz parte da vida. Nos desfazemos de tudo aos poucos: papéis, lembranças, sentimentos que estavam arraigados. Uma faxina na alma é sempre válida. Devemos abrir espeço para o novo, para os recomeços. Ótimo, parabéns! Beijos!
ResponderExcluir*espaço
ResponderExcluirRiso,
ResponderExcluirótimo texto !
É bom jogar fora o que nos pesa e ter coragem para recomeçar. Estamos sempre recomeçando e levando na bagagem a palavra : Aprendizado. COmo disse a Sayonara : O desapego faz parte da vida .