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Literatura e jornalismo
* Urariano Mota
Este é um tema tão batido, tão surrado, quanto inexplicavelmente novo. Menos batido e novo, por certo, que o tema do Amor. Mas ainda assim novo, pelos caminhos que se abrem a cada nova primavera, e velho, pelos muitos invernos passados, há muitos invernosos séculos. Arbitrariamente, para não descermos até os tempos homéricos, diríamos que esta é uma discussão de duzentos anos: o que é literatura, o que não é, o que é jornalismo, o que não é, em que lugar se misturam as suas fronteiras, se é que já não vieram ao mundo misturadas.
Bom, se o conhecimento nos faltar, que a inteligência e a generosidade do leitor me ajude. Que olhe nas entrelinhas, ou entre duas palavras, ou numa pontuação simples, qualquer coisa mais espirituosa. Que tenha portanto uma caridade cristã, porque vamos começar por afoitas oposições a opiniões ilustres. Preparem-se, porque de antemão temos o espírito contrito.
Há quem diga, por exemplo, que todo texto, artigo, entrevista, reportagem, que todo tipo de periodismo é um gênero literário. E mal satisfeito de assim haver escrito, acrescente que esses textos formam um gênero equiparável a qualquer outro, e por “qualquer” desejam dizer a poesia, o drama, a ficção, o ensaio. Ao ler um pensamento assim redigido somente nos ocorre dizer que o papel suporta tudo. E muito lamentar que diante de tamanha liberdade não tenhamos criado as maiores maravilhas, um mundo mais razoável do que este que nos coube viver. Então avançamos, e só não caímos em si, porque a gramática condena. Caímos em nós, portanto. Se tamanha liberdade não nos leva às mais extraordinárias invenções é porque mais simplesmente é uma leviandade. Ainda que a poesia, o poema, como prática e teoria há muito tenha ido além de Homero e Aristóteles, não dá para ser confundida com os textos que lemos sobre a morte do Papa. O que se afirma é que um texto assim é um gênero equiparável à poesia. Que nos perdoem os poetas, tal afirmação é poesia, no sentido em que os filisteus dão à palavra – não é séria, é irresponsável, é ilusão. Pois não se diz jamais que as atas das reuniões, dos partidos, das fundações de sociedades, sejam poesia, ainda que muitos poetas sobrevivam como burocratas. Entendam, é que o gênero da atividade, de fórmulas prontas que se copiam ao infinito, que se executam sem discussão, com um ânimo de bestas cegas, se bestas cegas fossem anêmicas, desprovidas de vigor, entendam, o gênero das atas não permite. Mas uma reportagem não é uma ata de reunião, um anjo nos corrige, para que voltemos ao eixo. Então lhe perguntamos:
- Anjo. sabes o que é uma reportagem?
- Claro: é um texto bem escrito, um relato fiel de um acontecimento, que leva o leitor à cena, da morte, da santidade, ou da hipocrisia... Perdão: da hipocrisia já não é uma reportagem.
- Sabes o que é poesia?
- Claro. É um texto bem escrito....
- Poesia ou poema?
- Claro, poema... É um texto bem escrito, que nos leva à emoção, ou nos faz refletir sobre um sentimento, de forma concisa, com multiplicidade de significados...
Sentimos que o anjo se enreda em suas asas. Com prazer sentimos. Se não temos uma visão amadurecida do que é a poesia, deveríamos ter uma cautela de aproximar a reportagem, toda e qualquer reportagem, a um gênero comparável à poesia. A passagem, a ponte do inferno, é o “equiparável” – comparável como se fosse igual. Mas as palavras, ainda que tenham tão mau exercício, não deviam servir ao engano, à burla. Se vamos comparar coisas absolutamente distintas, digamos já em que as comparamos, e mesmo se são comparáveis. Para que não cometamos os versos de um cantor repentista do Nordeste, o lendário Zé Limeira:
“O velho Tomé de Sousa / governador da Bahia / casou-se e no mesmo dia / passou a pica na esposa. / Ele fez que nem raposa / comeu na frente e atrás / chegou na beira do cais / onde o navio trefega / comeu o Padre Nóbrega / os tempos não voltam mais.”
Ainda aqui a comparação é precária. O velho Zé Limeira servia-se do absurdo para consertar e concertar as próprias rimas, e fazia disso uma graça e fascínio. O que é diferente de um absurdo, digamos, involuntário. Vindo de pena ilustre, acostumada ao peso e exercício das palavras, nos obriga a uma reflexão, antes que os tempos não voltem mais. Que é: acontece aqui, nessa passagem de todo texto jornalístico à condição de poesia, uma frágil justiça, por julgar que a democracia é uma ausência de diferenças hierárquicas. Ora, todos admitem que um engenheiro não é um físico teórico, ou um pesquisador das estrelas. Nisso não há problema, nem inferioridade dos ramos do conhecimento, porque até mesmo um teórico precisa de uma casa que não lhe caia sobre a cabeça. Há por essa diferença um respeito, que vai até a discriminação, como todo bom respeito. Mas a todo homem que escreve julga-se normal que faça um gênero equivalente à poesia, sem nenhum problema. Das duas, uma: ou o exercício da poesia é uma coisa fácil, fácil, ou o escrever é um dom que já nos faz pular do útero da mãe como poetas.
Avancemos então mais um pouco. Aqui, nesse democratismo, confundem-se os gêneros às pessoas. A quem levanta a diferença, os escritores que também são jornalistas, e que vêem nessa condição híbrida uma síntese natural, contestam: - E por que um jornalista não pode ser um poeta? (Embora, com freqüência, não perguntem por que um poeta não pode ser jornalista.) Ao que respondemos: com certeza, todo e qualquer homem pode ser um poeta, até mesmo os jornalistas, por extensão. A democracia vai até aí, às pessoas, sem impedimento de raça, renda ou profissão. O que é diferente de uma democracia de gêneros. E bem diferente de um texto poético ser o mesmo que um texto jornalístico, pela simples condição de ser um texto escrito. Nisso está, e espero ser tão óbvio que nos perdoem algum olvido, o reconhecimento e o conhecimento de que um texto jornalístico pode ser prenhe de poesia, e de tal maneira que não se encontra em muitos poemas. Mas já então, pergunta-nos o anjo, que a partir daqui assume a condição de demônio: - E esses textos, grávidos de poesia, seriam ainda assim um texto jornalístico? Ao que respondemos, furtando-nos por entre suas antigas asas: - Como gênero, são poesia. Como meio, como mensagem publicada, são jornalismo, mas de uma qualidade rara, e tão rara que somente mantêm o vínculo com o periodismo pela referência objetiva ao mundo. (O que é, reconhecemos, essa “referência objetiva ao mundo”, um outro dado complicador, pois nesses casos, de textos poéticos, há uma miscigenação do objetivo e do subjetivo de tal modo que impossível é dizer em que proporções. Mistura, reunião, bem mais complexa que a maravilha produzida pelo H2O.)
O exemplo sempre erguido contra a distinção dos gêneros, quando se fala do escritor e do repórter, e de literatura e periodismo, é o de Truman Capote com o....esqueçamos o gênero, com o livro A Sangue Frio. Lembra-se isto como quem joga uma carta decisiva sobre a mesa, como quem dá um golpe que é um nocaute, como quem arremete um míssil certeiro sobre o avião inimigo, como quem desmascara um cego porque este viu o azul do céu de Pernambuco. “E então, que me dizes? Eis uma reportagem que é ao mesmo tempo um relato de excelência literária. Então, que me dizes?”. O que não dizem, e é deixado de lado, oculto, como se fosse uma coisa menor, é que Truman Capote levou pelo menos 5 anos para escrever essa reportagem! E isto é um tempo impossível de se alcançar nas redações dos jornais, que escrevem sobre o agora com o advérbio ontem. Ou seja, os textos vêm à luz com um imediatismo deslumbrante. Fala-se até, como um grau de excelência da reportagem, num “tempo real”, ou seja, o leitor ouvir, ler e olhar a notícia no mesmo instante em que o repórter pensa em abrir a boca. Mais rápido que um fast news. Uma impaciência que não espera as ondas emitidas pelos satélites. Que deseja enfim um instantâneo que não pode esperar sequer pelo tempo da velocidade da luz. Ora, como dizer então que “A sangue frio” é uma reportagem? Pelo tempo de maturação, de pesquisa, pela qualidade, pelos personagens, seguramente não é. Ah, sim, fala-se em reportagem porque esse romance, desculpem, foi sem querer, porque esse livro é um relato de um mundo real, de pessoas reais, de um crime real, de um fato de carne e sangue concretos de uma cidadezinha dos Estados Unidos. Pelo vínculo objetivo com o mundo objetivo numa relação objetiva.
Concedam, e desta vez não pediremos desculpa: toda essa objetividade é mentirosa. Os fatos são objetivos, sim. Mas por mais contundentes que sejam, os fatos não falam por si, pelo menos não falam com eloqüência, não falam com uma voz que nos arranque do torpor, da apatia, da inação. Os fatos falam quando organizados, de uma certa perspectiva vistos, por um olho humano selecionados, mastigados, ruminados, gozados, sofridos – numa palavra, quando falam a verdade da viva experiência. Os Sertões de Euclides da Cunha nasceram como uma reportagem, mas seu produto final, o livro épico da desgraça nordestina, já não mais é uma reportagem. "Canudos não se rendeu... caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.”
Isto acima de nós, por força do seu lugar no texto, e por força da expressão, isto acima de nós não é objetivo, por maior verdade que fale e expresse. Isto é imagem subjetiva, voz de um escritor parcial, com parcialidade escrita, porque indignada contra o massacre de uma gente rude, que desejava o céu na terra. Canudos não é uma ficção, infelizmente é um fato real, um massacre objetivo. Mas é literatura, porque mantém uma qualidade de escrita acima do comum, porque é narrado com vigor, maestria e paixão, somente um pouco abaixo da grandeza da injustiça que narra. E depois, que diabo, que estamos nós a fazer aqui, quando discutimos o gênero do relato de um crime extraordinário?
De que gênero será o mundo, quando acabar? Poesia, horror, gemido ou reportagem? Respostas que deixamos para as bombas. Ao fim e ao cabo, o demônio consegue o seu intento.
* Jornalista e escritor
* Urariano Mota
Este é um tema tão batido, tão surrado, quanto inexplicavelmente novo. Menos batido e novo, por certo, que o tema do Amor. Mas ainda assim novo, pelos caminhos que se abrem a cada nova primavera, e velho, pelos muitos invernos passados, há muitos invernosos séculos. Arbitrariamente, para não descermos até os tempos homéricos, diríamos que esta é uma discussão de duzentos anos: o que é literatura, o que não é, o que é jornalismo, o que não é, em que lugar se misturam as suas fronteiras, se é que já não vieram ao mundo misturadas.
Bom, se o conhecimento nos faltar, que a inteligência e a generosidade do leitor me ajude. Que olhe nas entrelinhas, ou entre duas palavras, ou numa pontuação simples, qualquer coisa mais espirituosa. Que tenha portanto uma caridade cristã, porque vamos começar por afoitas oposições a opiniões ilustres. Preparem-se, porque de antemão temos o espírito contrito.
Há quem diga, por exemplo, que todo texto, artigo, entrevista, reportagem, que todo tipo de periodismo é um gênero literário. E mal satisfeito de assim haver escrito, acrescente que esses textos formam um gênero equiparável a qualquer outro, e por “qualquer” desejam dizer a poesia, o drama, a ficção, o ensaio. Ao ler um pensamento assim redigido somente nos ocorre dizer que o papel suporta tudo. E muito lamentar que diante de tamanha liberdade não tenhamos criado as maiores maravilhas, um mundo mais razoável do que este que nos coube viver. Então avançamos, e só não caímos em si, porque a gramática condena. Caímos em nós, portanto. Se tamanha liberdade não nos leva às mais extraordinárias invenções é porque mais simplesmente é uma leviandade. Ainda que a poesia, o poema, como prática e teoria há muito tenha ido além de Homero e Aristóteles, não dá para ser confundida com os textos que lemos sobre a morte do Papa. O que se afirma é que um texto assim é um gênero equiparável à poesia. Que nos perdoem os poetas, tal afirmação é poesia, no sentido em que os filisteus dão à palavra – não é séria, é irresponsável, é ilusão. Pois não se diz jamais que as atas das reuniões, dos partidos, das fundações de sociedades, sejam poesia, ainda que muitos poetas sobrevivam como burocratas. Entendam, é que o gênero da atividade, de fórmulas prontas que se copiam ao infinito, que se executam sem discussão, com um ânimo de bestas cegas, se bestas cegas fossem anêmicas, desprovidas de vigor, entendam, o gênero das atas não permite. Mas uma reportagem não é uma ata de reunião, um anjo nos corrige, para que voltemos ao eixo. Então lhe perguntamos:
- Anjo. sabes o que é uma reportagem?
- Claro: é um texto bem escrito, um relato fiel de um acontecimento, que leva o leitor à cena, da morte, da santidade, ou da hipocrisia... Perdão: da hipocrisia já não é uma reportagem.
- Sabes o que é poesia?
- Claro. É um texto bem escrito....
- Poesia ou poema?
- Claro, poema... É um texto bem escrito, que nos leva à emoção, ou nos faz refletir sobre um sentimento, de forma concisa, com multiplicidade de significados...
Sentimos que o anjo se enreda em suas asas. Com prazer sentimos. Se não temos uma visão amadurecida do que é a poesia, deveríamos ter uma cautela de aproximar a reportagem, toda e qualquer reportagem, a um gênero comparável à poesia. A passagem, a ponte do inferno, é o “equiparável” – comparável como se fosse igual. Mas as palavras, ainda que tenham tão mau exercício, não deviam servir ao engano, à burla. Se vamos comparar coisas absolutamente distintas, digamos já em que as comparamos, e mesmo se são comparáveis. Para que não cometamos os versos de um cantor repentista do Nordeste, o lendário Zé Limeira:
“O velho Tomé de Sousa / governador da Bahia / casou-se e no mesmo dia / passou a pica na esposa. / Ele fez que nem raposa / comeu na frente e atrás / chegou na beira do cais / onde o navio trefega / comeu o Padre Nóbrega / os tempos não voltam mais.”
Ainda aqui a comparação é precária. O velho Zé Limeira servia-se do absurdo para consertar e concertar as próprias rimas, e fazia disso uma graça e fascínio. O que é diferente de um absurdo, digamos, involuntário. Vindo de pena ilustre, acostumada ao peso e exercício das palavras, nos obriga a uma reflexão, antes que os tempos não voltem mais. Que é: acontece aqui, nessa passagem de todo texto jornalístico à condição de poesia, uma frágil justiça, por julgar que a democracia é uma ausência de diferenças hierárquicas. Ora, todos admitem que um engenheiro não é um físico teórico, ou um pesquisador das estrelas. Nisso não há problema, nem inferioridade dos ramos do conhecimento, porque até mesmo um teórico precisa de uma casa que não lhe caia sobre a cabeça. Há por essa diferença um respeito, que vai até a discriminação, como todo bom respeito. Mas a todo homem que escreve julga-se normal que faça um gênero equivalente à poesia, sem nenhum problema. Das duas, uma: ou o exercício da poesia é uma coisa fácil, fácil, ou o escrever é um dom que já nos faz pular do útero da mãe como poetas.
Avancemos então mais um pouco. Aqui, nesse democratismo, confundem-se os gêneros às pessoas. A quem levanta a diferença, os escritores que também são jornalistas, e que vêem nessa condição híbrida uma síntese natural, contestam: - E por que um jornalista não pode ser um poeta? (Embora, com freqüência, não perguntem por que um poeta não pode ser jornalista.) Ao que respondemos: com certeza, todo e qualquer homem pode ser um poeta, até mesmo os jornalistas, por extensão. A democracia vai até aí, às pessoas, sem impedimento de raça, renda ou profissão. O que é diferente de uma democracia de gêneros. E bem diferente de um texto poético ser o mesmo que um texto jornalístico, pela simples condição de ser um texto escrito. Nisso está, e espero ser tão óbvio que nos perdoem algum olvido, o reconhecimento e o conhecimento de que um texto jornalístico pode ser prenhe de poesia, e de tal maneira que não se encontra em muitos poemas. Mas já então, pergunta-nos o anjo, que a partir daqui assume a condição de demônio: - E esses textos, grávidos de poesia, seriam ainda assim um texto jornalístico? Ao que respondemos, furtando-nos por entre suas antigas asas: - Como gênero, são poesia. Como meio, como mensagem publicada, são jornalismo, mas de uma qualidade rara, e tão rara que somente mantêm o vínculo com o periodismo pela referência objetiva ao mundo. (O que é, reconhecemos, essa “referência objetiva ao mundo”, um outro dado complicador, pois nesses casos, de textos poéticos, há uma miscigenação do objetivo e do subjetivo de tal modo que impossível é dizer em que proporções. Mistura, reunião, bem mais complexa que a maravilha produzida pelo H2O.)
O exemplo sempre erguido contra a distinção dos gêneros, quando se fala do escritor e do repórter, e de literatura e periodismo, é o de Truman Capote com o....esqueçamos o gênero, com o livro A Sangue Frio. Lembra-se isto como quem joga uma carta decisiva sobre a mesa, como quem dá um golpe que é um nocaute, como quem arremete um míssil certeiro sobre o avião inimigo, como quem desmascara um cego porque este viu o azul do céu de Pernambuco. “E então, que me dizes? Eis uma reportagem que é ao mesmo tempo um relato de excelência literária. Então, que me dizes?”. O que não dizem, e é deixado de lado, oculto, como se fosse uma coisa menor, é que Truman Capote levou pelo menos 5 anos para escrever essa reportagem! E isto é um tempo impossível de se alcançar nas redações dos jornais, que escrevem sobre o agora com o advérbio ontem. Ou seja, os textos vêm à luz com um imediatismo deslumbrante. Fala-se até, como um grau de excelência da reportagem, num “tempo real”, ou seja, o leitor ouvir, ler e olhar a notícia no mesmo instante em que o repórter pensa em abrir a boca. Mais rápido que um fast news. Uma impaciência que não espera as ondas emitidas pelos satélites. Que deseja enfim um instantâneo que não pode esperar sequer pelo tempo da velocidade da luz. Ora, como dizer então que “A sangue frio” é uma reportagem? Pelo tempo de maturação, de pesquisa, pela qualidade, pelos personagens, seguramente não é. Ah, sim, fala-se em reportagem porque esse romance, desculpem, foi sem querer, porque esse livro é um relato de um mundo real, de pessoas reais, de um crime real, de um fato de carne e sangue concretos de uma cidadezinha dos Estados Unidos. Pelo vínculo objetivo com o mundo objetivo numa relação objetiva.
Concedam, e desta vez não pediremos desculpa: toda essa objetividade é mentirosa. Os fatos são objetivos, sim. Mas por mais contundentes que sejam, os fatos não falam por si, pelo menos não falam com eloqüência, não falam com uma voz que nos arranque do torpor, da apatia, da inação. Os fatos falam quando organizados, de uma certa perspectiva vistos, por um olho humano selecionados, mastigados, ruminados, gozados, sofridos – numa palavra, quando falam a verdade da viva experiência. Os Sertões de Euclides da Cunha nasceram como uma reportagem, mas seu produto final, o livro épico da desgraça nordestina, já não mais é uma reportagem. "Canudos não se rendeu... caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.”
Isto acima de nós, por força do seu lugar no texto, e por força da expressão, isto acima de nós não é objetivo, por maior verdade que fale e expresse. Isto é imagem subjetiva, voz de um escritor parcial, com parcialidade escrita, porque indignada contra o massacre de uma gente rude, que desejava o céu na terra. Canudos não é uma ficção, infelizmente é um fato real, um massacre objetivo. Mas é literatura, porque mantém uma qualidade de escrita acima do comum, porque é narrado com vigor, maestria e paixão, somente um pouco abaixo da grandeza da injustiça que narra. E depois, que diabo, que estamos nós a fazer aqui, quando discutimos o gênero do relato de um crime extraordinário?
De que gênero será o mundo, quando acabar? Poesia, horror, gemido ou reportagem? Respostas que deixamos para as bombas. Ao fim e ao cabo, o demônio consegue o seu intento.
* Jornalista e escritor
Devolver-se e se devolver até a inegociável falência. Só isso podemos. E ao fim e ao cabo, não restarão nem as gavetas com as suas etiquetas. Tudo escárnio, ao som de Louis Amstrong cantando "What a wonderful world" ou "Smile" ... e sem ressentimentos, caro Urariano!!! Se conseguirmos colocar uma letra nesse imenso texto da vida, teremos feito muito. Mas fique tranqüilo, que vc já colocou muitas em todos os gêneros.
ResponderExcluirA sua inquietude não deixa passar nenhuma injustiça. Como falar de gêneros sem falar do massacre? Custamos a acreditar nessa guerra insana onde não havia inimigo a combater, mas que foi combatido mesmo assim. Louvar a liberdade é um dever que você não se furta, caro Urariano. Admiro-o por isso.
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