Mudanças
das falas obesas através dos tempos
*
Por Mara Narciso
A
dinâmica da civilização transforma tudo, em instantes, nesse mundo
globalizado e superconectado. Ninguém quer outro assunto que não
seja a guerra política na qual grassa a intolerância, assim, é
inútil tocar noutros temas.
Mas
insisto. Nada se metamorfoseia mais do que a chamada “alimentação
saudável”, uma mutante, que poucos sabem do que se trata. A
preferência pelo chamado peso adequado também mudou nas últimas
décadas. Muitos acham baixo o peso ideal sugerido pela OMS –
Organização Mundial de Saúde: um IMC – Índice de Massa Corporal
(peso dividido pela altura ao quadrado) entre 19 e 24,9 Kg/m². Para
ilustrar esse limite, alguém de 1,7 m deverá pesar, no máximo, 70
kg, para não ter doenças por excesso de bagagem corporal. As
pessoas de hoje acham pouco esse peso, querem físicos “mais
fortes”, e rejeitam o termo “obesidade”, mesmo para excessos
graves, preferindo falar em sobrepeso. Outros parâmetros corporais
deverão ser considerados como estrutura óssea, massa gorda, massa
magra, limite da medida da cintura de 94 cm para homens e de 80 cm
para mulheres e a relação cintura-quadril.
Os
adultos jovens da década de 1970 eram bem mais magros que os de
hoje, sendo o excesso de peso pequeno e raro. Essa verificação
visual chegou a assustar no atentado terrorista de Boston, aquele da
maratona e das panelas de pressão cheias de prego que foram
explodidas no meio da multidão. Os soldados eram altos e gordos. Uma
comparação com a corporação de quatro décadas antes mostraria o
grande aumento de peso que se verificou.
A
frequência e o grau de obesidade ampliaram-se, em todos os sentidos,
e continuam aumentando. Antigamente, quase que só a classe abastada
ficava obesa. Ser gordo era sinal de prosperidade. O sonho da minha
avó, Maria do Rosário de Souza Narciso, que media 1,5 m e se casou
com 37 kg, era engordar, e tinha como referência duas irmãs gordas.
Passou a vida comendo de três em três horas e fazendo
superalimentação. Ganhou 12 kg. Jorge Amado, descrevendo um
personagem rico, dono de fazendas de cacau, para lhe explicar o
físico escreveu: “barriga bem posta na vida”.
Quem
estava engordando costumava explicar: tenho ossos largos; meu
problema é glandular; acho que estou “inchado”; meu intestino é
preso, por isso engordo. Outros falavam: eu não entendo porque ganho
peso, quase não como, nem almoçar, almoço. Ou: parei os esportes,
quase não ando, por isso engordei. Depois, entre os mais sinceros: o
nervosismo me faz comer, principalmente à noite. Há algum tempo:
meu problema é ansiedade; comer me acalma. Ou, mais recentemente:
meu metabolismo é lento; trabalho sentado e chego tarde da noite. Os
mais confessionais acusam: ganho peso porque como demais, termino de
comer e em poucos minutos já estou com fome; como muito doce,
principalmente o chocolate; tenho compulsão alimentar; perdi o
controle, preciso de um remédio para me colocar limites.
Quando
o cliente diz não comer em excesso, o profissional imaturo pode
ficar impaciente e tecer críticas a obesidade em si, falando
palavras duras, mencionando gula, preguiça, falta de coragem, e isso
não ajuda, e sim, humilha, afugenta. Saber acolher beneficia. Longe
de ser um problema de saúde individual, é epidemia mundial,
especialmente nos países ricos. Sua complexidade desafia a ciência,
seja Fisiologia, Endocrinologia, Nutrição, Psiquiatria, Psicologia,
Farmacologia, Cirurgia Geral, Cirurgia Plástica e Educação Física.
Os sucessos iniciais acabam, com desapontadora frequência, em
fracasso, do qual estudos mostram recuperação do peso, após
medicamentos e/ou cirurgia bariátrica, até mesmo em quem tenha
excluído 50, 60 kg ou mais, há anos, com grande transformação da
sua vida, inclusive com cirurgias plásticas remodeladoras.
A
linguagem e os tratamentos mudaram, os sucessos e os fracassos se
misturam, enquanto o discurso de motivação tem de se adequar a uma
população sedentária. Há oferta máxima de alimentação
ultraprocessada e ultraconcentrada de calorias em volumes
relativamente pequenos. É preciso aprender com os obesos para
ajudá-los, porque, a mudança de comportamento, essa necessidade
desafiadora, insiste em escapar do controle durante uma vida inteira.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico e sócia efetiva de Academia Montes-Clarense de Letras, todos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Os obesos já são 50% dos brasileiros, e parcela ainda maior de norte-americanos. O combate ao sedentarismo, associado a programas de reeducação alimentar, podem ajudar bem a deter essa ameaça mortal...
ResponderExcluir