Altamira, de asas e horizontes
* Por Elizabeth Sigoli
Quando o
raio de sol incidiu sobre o cano do rifle de Altamira, fincado
sorrateiramente em sua janela, um reflexo argênteo, ágil,
projetou-se na calçada da praça. Era um sinal e todas as mulheres
sabiam o que ele significava. Altamira estava ansiosa. Vislumbrava
com gana o momento do ataque. Já há algum tempo os moradores da
aldeia de Sabíria só se preocupavam em servir à sua volúpia de
guerra. Em todas as casas as mulheres tinham estocado um punhado de
armas, formando um arsenal improvisado. Os meios mais rudes de luta
tinham sido revividos. E a terra exalava um odor de fêmea e sangue.
Vingança
era o que clamavam os gestos calculados daquelas mulheres, durante os
dias em que elas se preparavam para a luta. As mais moças
deslizavam furtivamente como gatas, espalhando mensagens. As velhas
ficaram encarregadas de preparar a munição e cuidar da manutenção
das guerreiras. Mãe Catalina era uma espécie de conselheira.
Qualquer idéia que as outras tivessem chegava logo ao seu
conhecimento para discussão e julgamento em grupo. Sempre fora esse
o papel da mãe Catalina na aldeia. Ainda nos bons tempos, ela era
consultada até para indicar, após estudos prolongados, os melhores
dias para a colheita.
Altamira,
mulher-cobra, também era figura de destaque no exército. A ela
estavam confiadas todas as decisões de caráter prático. E ainda
que o gênio dessas duas mulheres fosse completamente diferente, elas
se davam muito bem, acatando-se com respeito mútuo, que transbordava
de seus olhares firmes. Mãe Catalina era uma matrona estabelecida à
custa de uma prole numerosa e de um marido frágil, que tinha medo do
mundo. A mulher o amparara sempre, com sua voz vibrante, cheia de
coragem para enfrentar aquela vida que não era fácil. Nos últimos
anos, já não viviam juntos, porque Mãe Catalina decidira que não
poderia mais ficar tomando conta de tamanho homem. E concentrara-se
na tentativa bem-sucedida de formar uma boa vizinhança na aldeia,
espalhando também um sentimento de segurança. E incitando a
combatividade em todas as pessoas acomodadas.
Sua figura
tosca, resplandecente, clamava por justiça. E era nesse ponto que
sua personalidade tinha algo em comum com o gênio consciencioso de
Altamira. A mulher-cobra jamais tivera homem algum. Animal selvagem
que era, assustava a todos com sua liberdade e instinto sem
fronteiras. Nenhum macho ousava levantar os olhos para encarar
abertamente aquela diva réptil. Mas, nas reuniões do conselho da
aldeia, todos ouviam com respeito suas sábias e imperativas
palavras. E então prestavam-lhe um culto de admiração. Foram essas
duas fêmeas, possuídas pela paixão existencial, que rebentaram em
protestos contra a passividade dos cidadãos de Sabíria, numa das
últimas reuniões do conselho. Uma espécie de sessão coletiva, na
qual eram apreciados os problemas dos moradores da aldeia.
Nessa
noite, mãe Catalina proclamara um estado de discussão feroz.
-
Porque, se continuarmos protestando apenas com a língua, a invasão
vai começar mais cedo do que esperamos. Já estamos cansados de
saber que eles querem nossas terras com o afinco da possessão.
Conhecemos claramente suas intenções de nos expulsar daqui,
simplesmente porque não querem dividir conosco os lucros que irão
obter com a extração do urânio encontrado em nossa região. E nós,
em troca, despejamos sobre eles um punhado de inúteis palavras! À
guerra, conterrâneos!
-
Daqui a uma semana, eles voltarão. E, se os homens da aldeia não
tomarem nenhuma providência para enfrentar a situação, eu me
proponho a formar um exército com as companheiras que me apoiarem.
-
Lembrem-se de uma coisa: Sabíria não conta com proteção oficial de Estado algum. Somos apenas uma aldeia, um povoado, um ajuntamento de casas e pessoas. Não constamos do mapa do país. Não temos governo que nos cobre impostos. Portanto, não existimos. O que temos em comum nesta pátria são apenas a língua e os costumes. Além disso, somos mais solitários do que todos os povos de que já ouvimos falar. Sequer temos vizinhos...
Houve
um silêncio que perduraria ainda por alguns momentos, se a voz de
Altamira não quebrasse aquele clima de reflexão e medo.
- Mãe
Catalina tem razão. Temos de lutar por estas terras, que não estão
em nossas mãos por mero acaso. Elas nos pertencem há séculos. E
não vamos abrir mão do direito de propriedade, que, para nós,
significa, antes de mais nada, poder viver em paz nesta aldeia.
-
O invasor aproveita de nossa fragilidade para nos expulsar. Afinal,
não temos papéis que garantam nosso direito de posse. O governo
insiste em ignorar nossa presença no lugar. Seus agentes apenas
inspecionaram a área, para constatar a existência do minério. A
concessão foi vendida à companhia estrangeira, que nos ameaça
agora com seus capangas. A única coisa que nos resta é lutar contra
estes bandidos. Não devemos ceder. Não podemos ser coniventes com a
injustiça que é tramada contra nós.
Cristóbal
foi o primeiro homem a entender a proposta agreste de rebelião. Para
não sucumbir no ato à intempestividade das mulheres, falou com
grande ponderação. Na verdade, todos temiam a invasão e retardavam
o momento de decidir pelo combate, apenas por um certo comodismo
rançoso. Afinal, deixar o lar, arranjar armas e lutar contra homens
preparados para esta tarefa parecia-lhes um passo perigoso demais. A
história de Sabíria recordava atos de bravura realizados pelos
antepassados. Mas os tempos eram outros. Agora, as condições de
luta eram desesperadamente desiguais. Apesar disso, Cristóbal,
impulsionado pelo seu sangue de jovem mártir, concordou em lutar. E,
no conselho, iniciou-se uma votação para definir a posição dos
cidadãos. Apenas oito, dos quinhentos moradores adultos da vila,
votaram contra a proposta.
A
reunião durou ainda duas horas. Discutiram-se os planos para o
ataque no dia em que os capangas da companhia Lord Star viessem
subornar os sabirianos, tentando expulsá-los através de uma
recompensa fictícia. Era a primeira vez que as gerações de mãe
Catalina, Altamira e Cristóbal sentiam juntas que só a opção
pela luta asseguraria o direito de sobrevivência de sua gente. E,
com a intenção de exercer justiça a todo custo, transformaram a
aldeia numa fortaleza. No dia em que os invasores chegaram, os
sabirianos dispersaram-se sabiamente pelas colinas que contornavam a
cidade. E a guerra começou com otimismo e fé. Os primeiros homens
da companhia esfacelaram-se. Embora estivessem fortemente armados,
não esperavam uma reação tão encadeada. Mas alguns resistiram até
que os reforços militares foram chegando. E três meses durou aquela
batalha nos confins do mundo, até que foram exterminados pelo
delírio da força estrangeira todos os homens de Sabíria. Com
exceção do velho Íbano, que nem pudera acompanhar o exército, por
achar-se paralisado.
Ocultando
a verdadeira dor que sentiam, as mulheres sabirianas receberam os
invasores amigavelmente dias após o término da luta, quando já
haviam enterrado seus mortos em plena praça. Segundo ordens de mãe
Catalina e Altamira, nenhuma delas chorou, protestou ou demonstrou
medo ante os estranhos, que lhes prometiam ajuda de custo. E até
lhes indicavam um lugar pretensamente saudável para morar com seus
filhos, a vila de Santrevo.
-
E voltaremos na próxima terça-feira. E queremos as casas abandonadas. Em consideração à população exclusivamente feminina que vocês constituem agora por força das circunstâncias, não iremos vistoriar suas casas à procura de armas. Apenas pedimos que colaborem conosco, pois as coisas já se tornaram bastante difíceis. E saibam que o governo do seu país está conivente com todos os nossos atos.
Os
novos donos de Sabíria afastaram-se hirtos, gloriosos. Tão
confiantes estavam que não deixaram no povoado sequer um guardião.
E não entenderam a atitude fria das mulheres, que nem hostis se
mostraram. Quando tiveram a certeza de que eles já estavam longe, as
mulheres de Sabíria reuniram-se e deliberaram selvagemente sobre a
imperiosidade de novo combate.
-
Talvez morramos todas. Mas de que vale viver agora que nossos
companheiros se foram? E que temos de abandonar nossos lares?
O
grito de Anastazia, seco, firme, parecendo mais um hino de guerra,
incendiou todas elas. Anastazia não se conformara com a morte dos
homens e, principalmente, do impetuoso Cristóbal, um amante que a
inflamara sempre de prazer e de coragem.
Lúcidas
e ágeis, as mulheres souberam aguardar. E, quando os usurpadores
chegaram dias mais tarde, o silêncio pesava sobre a aldeia como um
sinal de desistência pura. As casas pareciam vazias, como havia sido
ordenado. Nenhum vestígio de moradia permanecia naquele fim de
mundo. Os homens sentiram-se à vontade como donos. As armas que
empunhavam com virilidade inflavam-lhes os peitos fortes e até os
adornavam com a aura de segurança de que necessitavam para
consolidar a conquista.
Como
espertas baratas, as mulheres tinham se escondido, camuflando-se no
cenário isolado. Após uma hesitação gélida, Altamira deu o
primeiro tiro com seu rifle, que aguardava impaciente o momento. E
uma rajada de sangue disparou com fúria do peito de Sengor, o
capataz, que viera comandar o trabalho nas minas. Um instante depois
de romper a sua volúpia assassina, Altamira desatou-se em assombro.
Ela se sentia delirante. Não entendia o que estava acontecendo. De
repente, o exército das mulheres não a obedeceu, quando ela deu a
voz de comando para colocar em prática a tática de luta que passara
tantos dias estudando.
A ira
atarrachara os mecanismos da razão das mulheres de Sabíria, que
afloraram à praça, ficando à mercê das metralhadoras dos homens,
que ribombavam como loucas. Esganiçadas vozes se ouviram e a
morte galopou sobre o povoado com a mesma voracidade com que se
revelara no combate anterior. Rompendo em gargalhadas ensolaradas,
algumas fêmeas saíram de suas casas nuas, com os filhos nos braços,
e apresentaram-se ao algoz, que transformava despudoradamente a elas
e a seus rebentos em postas de sangue berrante.
E
Altamira, com seu rifle sequioso, subiu ao telhado mais alto de
Sabíria e descarregou a arma sobre o corpo manso e gordo de mãe
Catalina, que já estava esborrachado vermelhamente no chão. Cheia
de dor, a velha guerrilheira tinha sido a primeira a dar o passo
traiçoeiro, rendendo-se descaradamente à força do invasor.
Descabelada pela covardia, ou quem sabe mansidão trágica de suas
companheiras, Altamira jogou o rifle na praça. E, sob os olhares
atônitos dos homens que admiravam a majestade de sua figura,
desencavou suas asas, alçando vôo, até ser devorada pelo
horizonte.
NOTA:
Conto premiado no Concurso Nacional de Contos “Newton Sampaio”,
da Secretaria da Cultura do Estado do Paraná, versão 2002,
publicado em 2004.
*
Elizabeth Sigoli é jornalista e psicóloga. Trabalhou no Diário
Popular, Gazeta Mercant5il, Jornal da Tarde, na Editora Abril,
Editora Três, Idéia Editorial, Revista Visão e Editora Globo.
Atuou, também, na Rádio Trianon AM 740, foi editora-chefe do Jornal
da Associação Médica Brasileira e editora da “Verbo &
Sujeito Comunicações Empresariais”, entre outras atividades.
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