Final
sem happy end
As
histórias de amor, via de regra, costumam ter “happy end”, em
que o herói beija a heroína, casa-se com ela e ambos vivem “felizes
para sempre”. É aqui, no entanto, que todas elas pecam, embora
seja o que os leitores sempre esperam. A vida não é assim. São
raros, raríssimos, os finais felizes que ela permite. Ademais, dada
a efemeridade humana, esse tal de “para sempre” é deslavada
mentira. Não existe! É conto da carochinha. É verdade que o
poetinha, Vinícius de Moraes, determinou que “o amor é eterno...”
Todavia, acrescentou, em seu basilar poema em que faz essa afirmação,
como quem não quer nada, esta verdade inegável e fatal (posto que
amarga): “eterno... enquanto dura”.
A
história de amor narrada por Urariano Mota, no romance “Soledad no
Recife” (Boitempo Editorial), não cai nessa esparrela, nesse
engodo, nessa armadilha, tão do agrado das ingênuas mocinhas
românticas, com a cabeça cheia de sonhos e fantasias, mas sem a
mesma, ou sequer próxima, dose de juízo. Esse primoroso livro não
tem o clássico “happy end”. Nem por isso (ou exatamente por
causa disso) deixa de ser belíssimo, poético, posto que pungente e
frustrante caso de amor.
Urariano
inicia o 12º capítulo, o clímax do enredo (boa parte do qual foi a
vida que urdiu e que o autor se limitou a transcrever, com a força e
a competência do seu talento), com esta patética e dolorosa
confissão, feita por seu personagem simultaneamente protagonista
central da história e seu narrador “Chegamos aqui ao mais difícil
de escrever, de narrar, de contar”. Pudera! Como você se sentiria
ao descrever as circunstâncias da morte da pessoa amada, ainda mais
da maneira brutal e covarde como a de Soledad Barrett Viedma ocorreu?
Eu não conseguiria fazer descrição alguma. Abriria mão da tarefa
e ficaria curtindo em silêncio minha mágoa e minhas saudades.
E
Urariano prossegue, sempre na voz do seu personagem-narrador, ainda
neste primeiro parágrafo do capítulo 12: “Com, a mão na testa,
ponho-me a refletir. A primeira frase que me vem, sem aviso, é:
passei 37 anos para entender e contar este momento. Mas quando isto
me digo, sinto que deveria esperar mais 37 anos, se mais vida eu
tivesse. Para não mergulhar no lusco-fusco, aurora ou escuridão de
uma probabilidade, entro e começo com as poucas ferramentas que
consegui ao longo destes anos. Mas invoco a paciência e a coragem
dos que me leem,
porque preciso de ajuda nesta difícil travessia” (...)
Um
leitor mais chato e desatento, ou que não lesse o livro até o
final, no afã de encontrar contradição onde ela sequer existe,
certamente observará, triunfante: “Ora, se aquele que conta a
história fazia parte do grupo guerrilheiro e era tão íntimo de
todos os integrantes, a ponto de estar apaixonado por Soledad, por
que sobreviveu? Ou não sobreviveu? Seria, porventura, um fantasma o
que narra os fatos? O livro seria psicografado?”. Não, não, não,
sujeitinho chato. Não existe essa contradição.
No
segundo parágrafo do capítulo 12 isso está esclarecido, e muito
bem. Está escrito: “Eu e Ivan escapamos no momento final. Em
momentos de desânimo me pergunto para quê; em momentos de ânimo,
me digo, eu sobrevivi para escrever este livro. A vida é uma ordem,
mesmo quando falamos de uma destruição. Resta dizer por que
escapamos, e se isso não consegue explicar, pelo menos devo dizer
como pulamos fora do vórtice, do olho do furacão”. (...)
Urariano
pouco, ou quase nada, fala do múltiplo traidor, Daniel, codinome do
Cabo Anselmo. Não deita falação sobre seu hediondo ato, como algum
escritor mais imperito faria. Eu, provavelmente, dedicaria capítulos
e mais capítulos, carregados de inútil retórica e indisfarçável
ódio, a esse cabuloso personagem, mas que desviaria o foco do que
realmente importa na história: o amor e a magnífica figura de
mártir de Soledad.
Da
minha parte, também não me referirei a essa figura nefasta, cujos
atos causam-me asco. A história se encarregou de mostrá-la, de
corpo inteiro, em sua covardia e insensibilidade. Ademais,
jornalistas muito mais competentes e precisos do que eu, fizeram isso
com muito mais classe e exatidão do que a que talvez eu
eventualmente tivesse.
É
o caso, por exemplo, de Octávio Ribeiro (já falecido), o mitológico
repórter policial conhecido como “Pena Branca” – que inspirou
o seriado “Plantão de Polícia” da Rede Globo, na figura do
repórter-detetive Waldomiro Pena, tão bem protagonizado por Hugo
Carvana, que ficou no ar por mais de dois anos, em fins dos anos 70 e
início dos 80 – que entrevistou o Cabo Anselmo, em 1984.
Outro
que trouxe à tona, com o mesmo brilhantismo, o verdadeiro perfil
dessa figura desprezível foi o não menos célebre jornalista
policial, de velha e boa cepa de repórteres que parecem em extinção,
Percival de Souza. Tudo o que eu pudesse dizer a seu respeito seria
redundante e mais confundiria do que esclareceria o leitor sobre as
ações e motivações desse tão controvertido (e, reitero, nefasto)
personagem da época da ditadura militar, de triste memória para o
Brasil.
Aliás,
oportunamente, proponho-me a escrever sobre Octávio Ribeiro (esse
sim merece ser sempre lembrado, e reverenciado), que tive o
privilégio e a honra de conhecer pessoalmente, quando esteve em
Campinas para lançar seu livro “Barra pesada”, ocasião em que
chegamos a estreitar uma amizade que muito me honrou e que durou até
sua morte.
Deixo
por conta do saudoso
Marco Albertim, cujo talento quem acompanha o
blog Literário pode
testemunhar, semanalmente, por
cerca de quatro anos, em
sua coluna, para resumir o romance “Soledad no Recife”, de
Urariano Mota, a partir da sua metade: “O
sexto capítulo destila uma oração, sempre na primeira pessoa. O
sétimo é particularmente tenso; título, Mota, há um grito
sufocado pedindo título! O oitavo é acentuadamente digressivo,
longo. Mas é aqui que o autor/narrador mostra-se fino na
constatação: “Não ousávamos perguntar a que preço, a que
preços, porque os desonestos mais desonestos são muito sensíveis à
mais leve desconfiança.” E porque Daniel não amava Sol, diz o
narrador: “Então ele era obrigado a fingir dentro do fingimento.”
Finíssimo. A identidade do espião, ou o pressentimento do pior
insinua-se na alma de Sol, no capítulo 10; as páginas nos dão
ímpeto de torcer o pescoço de Daniel/Anselmo. A dor de Soledad vem
a nu no capítulo 11; o autor soube, genial e poético, transmiti-la
para nós; para nós e para a agonia do escritor”.
Faltou
Albertim referir-se ao 12º capítulo, o do clímax de uma pungente
história de amor, posto que sem happy end. E é, paradoxalmente, por
causa da ausência de um final feliz que a figura majestática de
Soledad Barrett Viedma não se apagará jamais da memória dos
idealistas e dos amantes da liberdade, igualdade e fraternidade, por
conta e responsabilidade desse escritor com “muita lenha” ainda
para queimar: Urariano Mota.
Boa
leitura!
O
Editor.
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