Atualidade e perenidade
Os
bons romances, os que se eternizam e prendem a atenção dos leitores
décadas após terem sido escritos, pela atualidade dos temas que
tratam no enredo e pela captação da essência do comportamento
humano, aquele que permanece intacto, geração após geração,
refletidos em seus personagens, são raros. Todavia, mesmo que não
se constituam em sucessos de vendas, em best-sellers, destes que
enriquecem subitamente o autor e o façam candidato ao Prêmio Nobel
de Literatura, transformam-se no que consideramos “clássicos”,
tanto de algum país específico (o da origem do escritor), quanto,
por extensão, mundiais. Adquirem, dada a atualidade, a desejável
perenidade.
Um
dos livros que podem (e devem, em nome da inteligência e do bom
gosto) ser classificados dessa maneira é “Olhai os lírios do
campo”, de Érico Veríssimo. É possível que o leitor até
estranhe essa peremptória afirmação, já que esta não é, sequer,
a obra mais conhecida, famosa e citada do romancista gaúcho (por
sinal, muito bem sucedido no mundo das letras). Quem discordar,
todavia, da classificação que lhe empresto, ou não leu esse
romance, ou se o fez não lhe dedicou a devida atenção. Isso para
não pensar coisas piores de um leitor tão distraído (ou alienado?
Ou insensível?). Explicarei por que.
Publicado
há 80 anos, em 1938, o romance guarda uma atualidade rara até em
livros recém-lançados, boa parte dos quais não tarda a se tornar
ultrapassada, embora tenham lá sua importância como testemunhos de
uma época (isso, quando de fato têm). Uma boa obra de ficção
satisfaz múltiplas funções. Entre estas, as mais desejáveis são:
divertir ao mesmo tempo que instruir e suscitar reflexões. Ter
personagens complexos e através deles o autor expor opiniões sobre
os temas mais candentes do seu tempo, mas sem se tornar discursivo ou
dogmático. O leitor sequer se dará conta desse aspecto, tamanha a
naturalidade dos diálogos e descrições. E esta é a principal
virtude de “Olhai os lírios do campo”.
Trata-se
de uma crítica sutil e inteligente à futilidade e vazio de uma
sociedade hipócrita e alienada, ferozmente materialista, que
caracterizava a década de 30. E a de hoje, é muito diferente?
Melhorou, em termos de consciência? Claro que não! Na verdade,
piorou, e muito. Aliás, posto que melhor informada, é muito mais
individualista, imediatista e perdulária. Ademais, atingiu picos
inusitados (e crescentes) de alienação, apesar do fabuloso aparato
tecnológico de comunicação ao seu dispor.
A
história de Érico Veríssimo se passa numa Porto Alegre que, na
essência, pouco mudou nos dias atuais. Claro, multiplicou sua
urbanização, população, vantagens e problemas por pelo menos dez,
ou mais. Cresceu, mas não perdeu suas características urbanas
peculiares. A cidade em que os personagens transitam e representam
seus dramas, comédias e tragédias, é dinâmica e agitada,
caracterizada, já naquela época tão remota, por tráfego intenso
de automóveis nas ruas, telefones, cinemas, teatros, prédios altos
e gente rica, na zona central e nos bairros mais abastados e uma
periferia crescente, com problemas recorrentes que, por falta de
solução apropriada, apenas se multiplicaram, de hordas de
miseráveis, doentes e de vidas problemáticas.
O
romance tem como personagem central Eugênio Fontes, com seus
conflitos, contradições e, sobretudo, transformações. Trata-se de
um médico, profundamente pessimista, infeliz e complexado, com
múltiplos e complexos conflitos, dilemas interiores, contatos
sociais e vicissitudes. Ele é casado com Eunice, mulher rica, mas
fútil (e inútil), com a qual vive um arremedo de casamento. Tem uma
filha, Anamaria, na qual deposita imensas esperanças, mas teme que
se torne cópia fiel da esposa.
O
grande amor de Eugênio, todavia, não é a pessoa com que se casou.
É Olívia, colega de trabalho, jovem estudante da Faculdade de
Medicina de Porto Alegre, que sustenta enorme batalha para custear os
estudos. O romance pode ser dividido em duas partes, antes e depois
da transformação interior de Eugênio que, de um sujeito desanimado
e vazio, ferozmente materialista, muda sua postura e se transforma
(posto que lentamente) como água e vinho, num idealista. Não vou,
óbvio, resumir o enredo, até para não tirar o prazer da descoberta
de quem ainda não leu o romance, mas que se dispuser a fazê-lo.
Peço,
apenas, licença para reproduzir este trecho de “Olhai os lírios
do campo”, do capítulo 19, página 223 (da edição que tenho em
mãos), parágrafo 5, em que o autor, através de Eugênio Fontes,
trata de como deveria ser uma congregação de pacifistas (na época,
a Segunda Guerra Mundial ainda não havia começado, mas já se
esboçava, com acontecimentos que findariam por desembocar no
conflito.
Érico
escreve, a propósito: “Congregar os homens de boa vontade
partidários do pacifismo e determinar a cada um a sua tarefa, tendo
em vista que todos, desde o artesão mais humilde até o intelectual
mais reputado, podem prestar serviços à causa dentro do raio da sua
atividade. Devem-se usar as armas do amor e da persuasão. Fugir
sempre a toda e qualquer violência, mas saber opor à violência uma
coragem serena. Mobilizar todas as forças morais e utilizá-las na
guerra à guerra e aos outros males sociais. Fazer que homens de
espírito são, desinteressados e lúcidos subam aos postos de
governo e fiquem senhores da situação. Educar as crianças,
procurando dar-lhes desde o jardim da infância uma consciência
social. Procurar influir em todos os meios de publicidade moderna:
literatura, cinema, teatro, imprensa, rádio, fazendo o boicote de
tudo quanto é mau e vicioso. Não esquecer que o exemplo individual
é uma poderosa arma de propaganda. Estar disposto ao sacrifício e
nunca fugir à luta. Encher o país de escolas, hospitais e
dispensários. Conseguir aos poucos a socialização da medicina”.
Querem
anseios e necessidades mais atuais do que esses? É como se estas
palavras houvessem sido escritas ontem, ou até mesmo hoje pela
manhã, voltadas, portanto, para os nossos tempos, tão sombrios e
incertos, tão pertinentes e atuais que elas soam.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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