Ato desmedido
As pessoas soem condenar atos
desmedidos, incontroláveis e desproporcionais, dado seu exagero.
Quando se trata, todavia, de construir algo – uma casa, uma cidade,
uma obra de arte ou um poema, não importa – considero digno de
louvor e sinto indisfarçável inveja de quem age dessa maneira. E
não apenas isso, mas de quem esbanja talento com naturalidade e sem
menosprezar ninguém. De quem é altruísta e sacrifica a vida pelo
bem-estar e segurança alheios, como agiram, por exemplo, em épocas
diferentes, São Francisco de Assis e Madre Teresa de Calcutá (e
olhem que nem sou católico!). Gente assim é rara e merece nosso
respeito, reconhecimento e gratidão. Tenho como paradigmas,
portanto, os que praticam atos desmedidos, mas de competência, de
genialidade e de bondade.
Admiro, também, os que vivem
desmedidamente (para os padrões comuns), mas não somente o viver
por viver, mas sendo úteis e produtivos em idades provectas,
centenárias, ou ao redor delas. Foi o caso, por exemplo, da figura
veneranda do arquiteto Oscar Niemeyer. Aos 103 anos de idade, seguia
produtivo e genial, tanto que acabara de completar projeto do
memorial (ou do museu, não lembro bem) de outro gênio, que
igualmente já conta com idade considerável, que é o maior jogador
de futebol de todos os tempos, Pelé. E morreu aos 105 anos, em 2012,
esbanjando lucidez.
Claro que por ser escritor,
destino minha reverência e admiração mais profundas a quem exerça
a mesma atividade que exerço e pela qual tenho tamanha paixão. É o
caso do professor, ensaísta, crítico literário e tradutor Bóris
Schnaiderman, que aos 93 anos de idade, continuava sendo o cérebro
lúcido e genial que eu acompanhava há anos nos suplementos
literários dos jornais e revistas do país. E por que cito,
especificamente, este intelectual, que morreu em 2016, aos 99 anos?
Por uma série de razões, que tentarei resumir.
O primeiro e principal motivo
é pelo seu livro, “Tradução: Ato desmedido”, que ele vinha nos
prometendo desde 2004 e que foi lançado pela Editora Perspectiva.
Era de se esperar que um espaço voltado à literatura registrasse
isso, antes, durante e depois do lançamento. A segunda razão é a
figura carismática desse intelectual, que guardava estreita
identidade com a minha família (embora não o conheça
pessoalmente). Schneiderman nasceu, por exemplo, na Ucrânia, em 1917
(ano da Revolução Bolchevique). Meu saudoso pai nasceu em uma
cidade que na época pertencia a esse país e que atualmente pertence
à Rússia. Por isso, considerou-se, a vida toda, russo, enquanto
vários dos nossos parentes nascidos no mesmo lugar, consideram-se
ucranianos. Bóris é, pois, nosso patrício.
Mário de Andrade, no poema “O
poeta come amendoim”, escreveu, em determinado trecho:
“Brasil amado não porque
seja minha pátria,
pátria é acaso de
migrações e do pão-nosso onde Deus der…
Brasil que eu amo porque é
o ritmo do meu braço aventuroso,
o gosto dos meus descansos,
o balanço das minhas
cantigas, amores e danças.
Brasil que eu sou porque é
a minha expressão muito engraçada,
porque é o meu sentimento
pachorrento,
porque é o meu jeito de
ganhar dinheiro, de comer e de dormir”.
Meu pai elegeu, de coração
aberto, o Brasil como sua pátria e sempre se orgulhou disso.
Schneiderman fez o mesmo.
Todavia, esse notável
intelectual, que veio para o nosso país em 1925, aos oito anos de
idade, não somente se naturalizou brasileiro em 1941 (meu pai também
o fez, mais ou menos na mesma época), mas serviu o exército da sua
pátria de adoção, lutando na Segunda Guerra Mundial como soldado
da Força Expedicionária Brasileira. A experiência, aliás,
inspirou-lhe um romance, intitulado “Guerra em surdina”. Pena que
os militares, em vez de lhe darem alguma medalha ou mesmo
erigirem-lhe uma estátua, desrespeitaram-no anos depois.
Dadas suas posições
coerentes e firmes contra a tortura, dada sua origem eslava e o fato
de ter passaporte soviético, Bóris Schnaiderman teve sérios
problemas com os militares na época da ditadura implantada no Brasil
em 1964. Chegou, até mesmo, a ser preso (posto que em sala de aula).
Será que quem o prendeu tinha a mais remota noção da besteira que
estava fazendo? Duvido! Hoje, se o sujeito fosse identificado,
morreria de vergonha dessa heresia que praticou. Enfim...
Bóris Schnaiderman, ressalto,
esbanjava lucidez além dos 90 anos, o que não deixa de ser incomum.
Tanto que não se contentava em lançar um único livro. Lançou,
logo de cara, dois (como eu fiz com “Lance fatal” e “Cronos e
Narciso”). Do primeiro, já falei de passagem. O segundo foi
escrito pelo poeta Guenadi Aigui e se intitula “Silêncio e
clamor”. Mas se não é o autor, é como se fosse, pois a tradução
é sua. E traduzir, convenhamos, é mais complicado do que produzir.
Afinal, o tradutor tem que ter desembaraço e pleno conhecimento
gramatical não de um, mas de dois idiomas simultaneamente. E olhem
que o russo é em tudo diferente do português, a partir do alfabeto,
que é cirílico. Além de traduzir o livro em questão, Bóris
analisou os poemas nele contidos, contando com a parceria de sua
esposa, Jerusa, também crítica literária e tradutora.
O que me dá maior satisfação
em contar com este espaço diário é a possibilidade de escrever
sobre as pessoas e os livros que gosto. Os senhores não verão por
aqui críticas. E não porque eu seja alienado (pelo menos não me
considero como tal). A razão é que não faço publicidade do que (e
de quem) não gosto. Não destruo ninguém, mas também não dou
colher de chá ao que (ou a quem) entendo que seja ruim. Considero
que, se criticasse, estaria agindo com uma incoerência inconcebível.
De uma forma ou de outra, estaria alardeando o que detesto. Voltando
ao início destas reflexões, tenho consciência que meus comentários
e reflexões são sempre e sempre e sempre desmedidos. Como
desmedida, também (e principalmente) é minha admiração por quem
cria e me instrui, como é o caso de Bóris Schneiderman.
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Tenho contato com vários octogenários, nonagenários e até centenários lúcidos e produtivos nas academias que frequento. Também tenho contato com pessoas bastante idosas em meu consultório. O envelhecimento mental está a salvo em muitas pessoas longevas.
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