Arguto
observador
O
escritor, desde que seja atento ao que ocorre ao seu redor e, por
extensão, no mundo, tem condições de fazer extrapolações, com
razoável margem de acerto, de tal sorte que sejam interpretadas
pelos afoitos e desavisados como “profecias”. Que me perdoem os
crédulos, mas a mínima lógica sugere a impossibilidade de haver
profetas de fato. Ninguém tem condições de prever, e muito menos
com absoluto rigor, com 100% de exatidão, aquilo que não aconteceu.
Isso é um mito. O que alguns fazem são extrapolações. Reúnem
dados precisos sobre o que aconteceu e, mediante raciocínio lógico,
extrapolam o que “pode” acontecer. Às vezes acertam e outras
tantas (a maioria?) não. Quando erram, ninguém sequer se lembra.
Agora
responda-me, sem pestanejar, você sabe (ou se lembra) quem fez estas
afirmações (algumas bastante ousadas)?: “A
maioria das pessoas está ligada a um tempo anterior, mas você deve
estar vivo em nosso próprio tempo”.
“Hoje,
o tirano governa não pelo cassetete e pelo punho; mas, disfarçado
em pesquisador de mercado, ele conduz seu rebanho pelos caminhos da
utilidade e do conforto”.
“Para
o homem primitivo, a noção de espaço era um mistério
incontrolável. Para o homem da era tecnológica é o tempo que tem
esse papel”. “Os
anúncios são a arte das cavernas do século XX”. “O
rock and roll é a maior renovação artística desde Homero”.
Tudo
isso foi dito, ou mais propriamente escrito, por Herbert Marshall
McLuhan, cujo centenário de nascimento foi
comemorado no Canadá e lembrado em várias partes do mundo em
2011.
Alguns, caracterizam-no como filósofo e educador. Outros, veem
nele um “profeta” da modernidade. Pode ser tudo isso, mas,
sobretudo, ele foi, mesmo, um escritor. E por que afirmo isso com
tanta convicção? Porque esse intelectual – que nasceu em Edmonton
em 21 de julho de 1911 e morreu em Toronto em 31 de dezembro de 1980
– tem, como formação acadêmica, a Literatura Inglesa Moderna,
curso em que se graduou em 1934.
É
verdade que nem escreveu tanto. Publicou, apenas, seis livros, todos
traduzidos para os principais idiomas e a totalidade deles lançada
no Brasil: “A galáxia Gutemberg, a formação do homem
tipográfico” (Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio
Teixeira, 1969, Editora da Universidade de São Paulo), “Os meios
de comunicação como extensões do homem” (Tradução de Décio
Pignatari, 1969, Editora Cultrix), “O meio é a mensagem”
(Tradução de Ivan Pedro Martins, 1969, Editora Record), “Guerra e
paz na Aldeia Global” (Tradução de Ivan Pedro Martins, 1971,
Editora Record), “Do clichê ao arquétipo” (Tradução de Ivan
Pedro Martins, 1973, Editora Record) e “McLuhan por McLuhan,
conferências e entrevistas” (2006, Editora Ediouro).
Observe-se
que todas essas obras são voltadas para a área de comunicação
que, queiram ou não, dada não somente a miraculosa evolução
tecnológica, mas também a conceitual, revolucionou o mundo,
expandiu a civilização e transformou o Planeta, de fato, na
metáfora preferida desse pensador e a mais citada das tantas criadas
por ele: “aldeia global”. Não por acaso, McLuhan é visto como o
“pai” do conceito de globalização. Sem tirar seus méritos, o
que esse escritor fez foi prever o óbvio. Não se tratou, pois, de
nenhuma “profecia”. Foi um exercício de extrapolação.
Outras
metáforas popularizadas por esse polêmico canadense, cujas ideias,
nos anos 60 do século XX, eram uma febre, mania, até modismo,
citadas por todos tanto no contexto que ele criou, quanto fora dele,
são as expressões “impacto sensorial”, “o meio é a mensagem”
e, sobretudo, “aldeia global”. Não foram somente os veículos de
comunicação que “encolheram” o Planeta, aproximaram povos,
misturaram culturas e determinaram novos comportamentos. Foram,
também, os transportes, notadamente os aéreos intercontinentais.
Vocês
já imaginaram as dificuldades para promover, no início do século
XX, algum grande evento internacional, não importa se artístico,
esportivo ou de outra natureza qualquer? Os meios de locomoção eram
lentos, desconfortáveis e inseguros. Para se deslocar, por exemplo,
da Europa para a América do Sul, para participar da Copa do Mundo de
1930, no Uruguai, a primeira da história, as seleções europeias
tiveram que recorrer a navios, numa travessia cansativa e desgastante
de semanas.
Daí
poucos países terem participado desse evento. Hoje, em algumas
poucas horas, viaja-se, com conforto e segurança, de qualquer parte
do mundo para outra. Daí o sucesso e o crescente interesse de Copas
do Mundo não somente de futebol mas de todas as modalidades
esportivas, de Jogos Olímpicos e de tantas outras promoções,
inclusive megashows de artistas de toda e qualquer parte. Transportes
rápidos e comunicações eficientes, de fato, encolheram o Planeta.
Fizeram dele, sem dúvida e sem nenhum exagero, a “aldeia global”
que é hoje, que, é mister ressaltar, não traz somente vantagens
(aliás poucas), mas muitos problemas e distorções. Mas... este
assunto é para ser tratado em detalhes em outra ocasião.
Marshall
McLuhan teve a grande virtude de dar o devido valor a estes avanços
e extrapolar suas consequências.
Cometeu exageros? Sim, e muitos. Nem tudo o que disse ou escreveu
pode ou deve ser tomado ao pé da letra. Uma das suas conclusões
precipitadas, por exemplo, é a de que “o
rock and roll é a maior renovação artística desde Homero”. Não
nego a importância desse ritmo (embora não esteja entre minhas
preferências musicais). Mas daí a concluir o que McLuhan
concluiu... não deixa de ser tremenda bobagem, talvez (ou
provavelmente) ditada pelo retumbante sucesso dos Beatles na época
em que deu essa declaração.
Caso
o polêmico escritor canadense fosse, mesmo, “profeta” da
modernidade, título que muitos lhe atribuíram (e ainda lhe
atribuem), teria previsto com exatidão, com décadas de
antecedência, o caráter revolucionário, por exemplo, do computador
pessoal. Não previu. Ou, e principalmente, as tremendas facilidades
proporcionadas pela internet, esse imenso “oceano de informações”,
em que navegamos com desembaraço todos os dias. Também não fez a
menor referência a algo sequer parecido. O veículo que ele elegeu
como aquele que iria massificar a cultura e a informação foi a
televisão, que no seu tempo começava a deixar os limites locais
para se internacionalizar, diria, se “mundializar”, graças as
satélites de comunicação.
Das
conclusões de Marshall McLuhan, uma das minhas preferidas é a que
alerta os omissos e acomodados: “Não
existem passageiros na espaçonave Terra. Somos todos tripulação".
Citei-a em inúmeras ocasiões, muitas vezes cometendo o pecado
mortal da omissão do devido crédito, já que essa afirmação se
popularizou de tal sorte, que praticamente caiu no domínio público.
A despeito de algumas restrições que apontei nestas reflexões,
todavia, reconheço (e nem poderia deixar de fazê-lo) Marshall
McLuhan como um dos mais argutos observadores que conheci (se não o
mais) e, por isso, lhe rendo a mais profunda reverência.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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