Com
a cara e a coragem
*
Por Arita Damasceno Pettená
Estávamos
– e faz tempo – em uma tarde ensolarada, entre pais, educadores e
educandos, diante de um auditório de aproximadamente duzentas
pessoas. A temática, “A família na Escola”, deveria despertar
momentos de reflexão no público ali reunido. E ali estavam também
seres das mais diversas classes sociais. Dos mais variados credos.
Das mais diferentes raças. Mas o objetivo era um só. Levar a nossa
palavra, como poeta, como escritora, a cada criatura ali presente,
através de exposição de ideias, de questionamentos, de respostas
que, espontâneas, chegassem a um só consenso: como enfrentar,
diante de um mundo minado por conflitos e confrontos, as convulsões
geradas no dia a dia da falta de emprego, das flagrantes injustiças,
da ausência de oportunidades para os que buscam brechas para uma
existência mais digna. E falávamos do desperdício e das latas de
lixo cheias de supérfluos enquanto milhares vivem nos dramáticos
bolsões da miséria onde encontram de tudo, menos o caminho da
esperança. De repente, atrás de nós, alguém nos cochicha: “Você
está adentrando um terreno perigoso. A supervisora da merenda
terceirizada está na cozinha”. Minutos antes recebíamos
informações – e recusáramos a acreditar – que tudo o que
sobra, assim que os alunos acabam de se abastecer, é jogado, sem dó,
sem piedade, sem consciência, no latão para onde vão as coisas
inaproveitáveis. E ai se o professor, perambulando por três, quatro
escolas, recorre a uma simples bolacha, ou toma um líquido qualquer
reservado à clientela escolar. É submetido sumariamente a um
Conselho de Escola onde, de maneira humilhante, é tratado como se
fosse ave de rapina só porque deixou de usar seu miserável tíquete,
muitas vezes utilizado para complementar a cesta básica, que jamais
será farta, com o aviltante salário que recebe.
E
assim, pasmem os leitores, toneladas de alimentos que poderiam ser
aproveitados com tranquilidade são jogados fora todos os dias, nos
estabelecimentos de ensino do Estado, obedecendo a uma lei
estapafúrdia – e que precisa ser derrubada – enquanto o Zezinho
chega em casa e não tem o que comer . Enquanto o pai vai para o bar
e bebe até cair porque meios não tem para sustentar a família.
Enquanto os grandes se banqueteiam e esquecem os lázaros do lado de
fora, brigando por um pedaço de pão, por um palmo de chão, por um
pouquinho de paz.
A
presença da responsável pelo setor foi para nós um presente.
Chamamo-la diante dos que sentem na carne as constantes agressões
contra um estômago sempre vazio. Diante dos que deixam seus pés
marcados nas calçadas frias à procura de trabalho. Diante dos que
tinham os olhos estatelados pela informação da encarregada de que
obedecia ordens.
E
nós, que nos dizemos humanos e somos de desumana raça, assistimos
impávidos a esse festival de barbáries sob o aval do Estado, e não
fazemos nada, absolutamente nada, para reverter esse ignominioso
quadro de esbanjamento, implantado por nossos governantes e
prefeitos. E isto porque nos falta cara e coragem para dar um basta a
essa situação de calamidade pública, para derrubar de vez
diretrizes que só prejudicam o povo. E este nosso silêncio, e esta
nossa omissão nos tornam coniventes com posturas nada éticas, e até
mesmo criminosas, e que deveriam ser rechaçadas, de pronto, pelos
que têm ainda um pouco de sensibilidade, de espírito crítico, de
amor ao próximo. E enquanto não lutarmos por uma terra mais justa,
mais solidária, mais fraterna, continuaremos assistindo, de
camarote, feiras esparramando nas ruas o que poderia ser aproveitado
nos barracos, onde incontáveis crianças dormem sonhando com o
pão-nosso de cada dia. Os restaurantes blefando a caridade ao
impedir que de seus panelões possam sair o que de tanto precisam as
creches, os orfanatos, os lares de velhinhos, que vivem sempre se
debatendo com despensas vazias, com a clássica pergunta: – Como
será o nosso amanhã? As escolas que têm, como meta, a educação
ensinando o homem de amanhã a não repartir com o outro a sobra que
lhe seria o maná do céu.
E
tudo isso tem jeito? Tem sim. E é tão fácil. Depende apenas de
cada um de nós. É hora de começar. É hora de somar forças na
construção de um mundo melhor. À luta, pois!
*
Arita Damasceno Pettená é professora, escritora e membro da
Academia Campinense de Letras, além
de membro honorária e fundadora do Instituto Histórico, Geográfico
e Genealógico de Campinas (IHGGC).
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