Do
“Diário de um escritor”
*
Por Fiodor Dostoievski
(…)
Os erros e as dúvidas da inteligência desaparecem mais depressa,
sem deixar rasto, que os erros do coração; desaparecem não tanto
em consequência de discussões e polêmicas como graças à lógica
iniludível dos acontecimentos da vida viva, que às vezes trazem
consigo o verdadeiro escape e mostram o caminho adequado, senão
logo, na primeira altura, num prazo relativamente breve, em certas
ocasiões, sem haver necessidade de se esperar pela geração
seguinte. Com os erros do coração o mesmo não sucede. O erro do
coração é de maior monta; significa que o espírito
frequentemente, o espírito de toda a nação, está doente, sofre de
qualquer contágio e não poucas vezes essa enfermidade, esse
contacto, implicam tal grau de cegueira, que toda a nação se torna
incurável… por mais tentativas que se façam para a salvar. Pelo
contrário, essa cegueira desfigura os fatos a seu talante,
deforma-os segundo as delirantes visões do espírito doente e até
pode suceder que toda a nação prefira ir para a ruína
conscientemente, quer dizer, conhecendo já a sua cegueira, a
deixar-se curar… pois já não quer que a curem (...)
(…)
Nós já esquecemos completamente o axioma de que que a verdade é a
coisa mais poética no mundo, especialmente no seu estado puro. Mais
do que isso: é ainda mais fantástica que aquilo que a mente humana
é capaz de fabricar ou conceber… de fato, os homens conseguiram
finalmente ser bem sucedidos em converter tudo o que a mente humana é
capaz de mentir e acreditar em algo mais compreensível que a
verdade, e é isso que prevalece por todo o mundo. Durante séculos a
verdade irá continuar à frente do nariz das pessoas mas estas não
a tomarão: irão persegui-la através da fabricação, precisamente
porque procuram algo fantástico e utópico (...)
(…)
Realmente, se
um dia de fato se descobrisse uma fórmula para todos os nossos
desejos e caprichos – isto é, uma explicação do que é que eles
dependem, por que leis se regem, como se desenvolvem, a que é que
eles ambicionam num caso e noutro e por aí fora, isto é uma fórmula
matemática exata – então, muito provavelmente, o homem deixaria
imediatamente de sentir desejo. Pois quem aceitaria escolher por
regras? Além disso, o ser humano seria imediatamente transformado
numa peça de um órgão ou algo do gênero; o que é um homem sem
desejos, sem liberdade de desejo e de escolha, senão uma peça num
órgão (...)
(…)
O mais esperto dos homens é aquele que, pelo menos no meu parecer,
espontaneamente, uma vez por mês, no mínimo, se chama a si mesmo
asno…, coisa que hoje em dia constitui uma raridade inaudita.
Outrora dizia-se do burro, pelo menos uma vez por ano, que ele o era,
de fato; mas hoje… nada disso. E a tal ponto tudo hoje está mudado
que, valha-me Deus!, não há maneira certa de distinguirmos o homem
de talento do imbecil. Coisa que, naturalmente, obedece a um
propósito.
Acabo de me lembrar, a propósito, de uma anedota espanhola. Coisa de dois séculos e meio passados dizia-se em Espanha, quando os Franceses construíram o primeiro manicômio: «Fecharam num lugar à parte todos os seus doidos para nos fazerem acreditar que têm juízo». Os Espanhóis têm razão: quando fechamos os outros num manicômio, pretendemos demonstrar que estamos em nosso perfeito juízo. «X endoideceu…; portanto nós temos o nosso juízo no seu lugar». Não; há tempos já que a conclusão não é lícita (...)
Acabo de me lembrar, a propósito, de uma anedota espanhola. Coisa de dois séculos e meio passados dizia-se em Espanha, quando os Franceses construíram o primeiro manicômio: «Fecharam num lugar à parte todos os seus doidos para nos fazerem acreditar que têm juízo». Os Espanhóis têm razão: quando fechamos os outros num manicômio, pretendemos demonstrar que estamos em nosso perfeito juízo. «X endoideceu…; portanto nós temos o nosso juízo no seu lugar». Não; há tempos já que a conclusão não é lícita (...)
(…)
É sabido que comboios completos de pensamento atravessam
instantaneamente as nossas cabeças, na forma de certos sentimentos,
sem tradução para a linguagem humana, menos ainda para uma
linguagem literária… porque muitos dos nossos sentimentos, quando
traduzidos numa linguagem simples, parecem completamente sem sentido.
Essa é a razão pela qual eles nunca chegam a entrar no mundo, no
entanto toda a gente os tem (...)
*
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski foi um escritor, filósofo e
jornalista do Império Russo. É considerado um dos maiores
romancistas e pensadores da história, bem como um dos maiores
"psicólogos" que já existiram.
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