O
Brasil na panela: dá um caldo
*
Por José Ribamar Bessa Freire
A
cozinha de um país é sua paisagem colocada na panela. (Provérbio
Catalão)
O
Brasil inteiro cabe dentro de uma panela. Não me refiro à usada
pelos “paneleiros” para derrubar uma presidente eleita. Tal
panela é vazia e oca como seus usuários, ao contrário da outra,
farta, cheia de ingredientes, condimentos, alimentos que geram
turbulências quando não são transportados por caminhões pelas
estradas para chegarem à cozinha do consumidor. Dentro dela cabem
receitas, temperos, cheiros, sabores, festa, música, humor,
literatura, economia doméstica, saúde, higiene e o quiabo a quatro.
Essa
receita do Brasil está no livro editado pela EDUFF lançado
recentemente na Livraria Icaraí, em Niterói – Discurso
sobre alimentação nas enciclopédias do Brasil: Império e Primeira
República –
de Phellipe Marcel, professor da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Ele realizou a façanha de encher a panela com sua
pesquisa de doutorado para analisar o Brasil dentro deste caldeirão:
o Brasil caipira, rural, urbano e suas identidades. O Brasil, não a
caricatura que a TV
Globo quer
no futuro, mas o que a gente tem agora.
O
tema surgiu graças ao carinho das duas avós do autor que
embaralharam narrativas, identidades e receitas e alimentaram o
Phellipinho com pão de ló. A vovó Yolanda, carioca, filha de
paraibanos e italianos, preparava ensopadinhos e doce de
laranja-da-terra. A vovó Cícera, alagoana, descendente de índios
com franceses, preparava um cuscuz imbatível, pudim de pão e
galinha cabidela ou ao molho pardo, que dá água na boca só em
falar. Pronto. Foi daí que nasceu o tema, temperado pelas avós de
tantos brasis: latino, índio, negro.
Receita
do Brasil
Mas
um tema sozinho não faz verão, mesmo que o pesquisador se entregue
apaixonadamente a ele como foi o caso. Faltavam os documentos e as
ferramentas de análise. O autor, com gosto e vocação para a
pesquisa, vasculhou os acervos da Biblioteca Nacional e da Academia
Brasileira de Letras em busca de alimentos ali registrados, assim
como aqueles que foram silenciados e apagados naquilo que
historicamente se considerava alimentação do brasileiro.
Encontrou
rico material, de cuja existência nem suspeitava. Consultou textos e
uma rica bibliografia incluindo desde a Carta de
Pero Vaz de Caminha até as crônicas e relatos de viajantes.
Identificou os discursos sobre comida que circulam no Brasil nos
livros de culinária, em almanaques, revistas, com o corpus de
análise concentrado nas enciclopédias. Analisou prefácios,
introduções, apresentações e notas dos editores na abertura das
coletâneas,
E
as ferramentas de análise? Ele foi buscá-las no Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal
Fluminense (UFF), que lhe forneceu os instrumentos conceituais e
teóricos no campo da Análise do Discurso (AD), complementando a
busca na Université
Paris 13,
sob a orientação segura da doutora Vanise Gomes de Medeiros.
O
livro se dirige não apenas aos conhecedores desta área, mas também
a nós – eu e muitos leitores – que não somos especialistas em
AD. Para isso, define os conceitos usados na tentativa de apreender
as filiações de sentido nas enciclopédias publicadas no período
de 1863 a 1925 sobre a comida brasileira para revelar em que medida
tal operação ajuda a entender o Brasil e os brasileiros.
O
corte cronológico toma como ponto de partida uma das primeiras
enciclopédias publicadas no Brasil – a Encyclopedia
do Riso e da Galhofa em Prosa e Verso (1863)
– e outras identificadas como fundadoras e que permitem reconstruir
a história dos sabores: a Encyclopedia
popular (1879)
- a primeira de divulgação científica em nosso país;
a Encyclopedia
e Diccionario Internacional (1920),
pioneira na organização em verbetes; o Thesouro
da Juventude (1925)
destinado à educação infantil, uma espécie de google da
minha geração e, finalmente, O
Cozinheiro Nacional (1870),
o primeiro livro de culinária com receitas.
Dupla
feijão-farinha
Com
esse material, o autor mostra discursivamente como se dá nas
enciclopédias a formação daquilo que vai sendo chamado de comida
brasileira, bem como a constituição da identidade nacional que se
constrói, entre outros materiais, com a culinária, talvez muito
mais do que com o futebol. Mais do que no gramado e nos estádios, o
Brasil está mesmo é na panela.
A
tese torna evidente o apagamento do discurso sobre a formação da
alimentação no Brasil no que diz respeito às influências e
contribuições do negro e do índio, marginalizados em detrimento da
herança lusa. O consumo de feijão, por exemplo, é registrado pelo
viajante francês Saint-Hilaire, entre 1816 e 1822, em diferentes
pratos com feijão-preto: “à moda brasileira”, “a modo dos
colonos”, “em tutu”, “tutu à baiana” e até a “feijoada”.
Mas as receitas não constam no Cozinheiro
Nacional(1870).
-
A dupla feijão-e-farinha de mandioca já era consumida antes da
chegada dos portugueses, mas só vai aparecer como base da
alimentação do brasileiro a partir de 1920, com a eclosão do
movimento modernista. Apesar de muitos ingredientes, pratos e comidas
indígenas terem sido apagados ou omitidos no discurso enciclopédico,
o feijão e a farinha resistiram– escreve Phellipe Marcel.
Desta
forma, o livro passa por outros sentidos sobre comida e sobre
sujeito, abordando o discurso geopolítico que “nacionaliza”
sabores e comidas, além do discurso médico, para o qual algumas
comidas e ingredientes são básicos não só para o sujeito
nacional, mas para toda a espécie humana. Discute o perigo da
universalização, generalização e redução do sujeito a uma
espécie biológica.
Ao
discorrer sobre comida e alimentação, Phellipe Marcel reflete muito
sobre a história desse Brasil imenso que, se cabe na panela, como a
paisagem na cozinha catalã, não deixa de ter, dentro dela,
conflitos, encontros, sabores e dissabores. Mas que dá um caldo, dá.
P.S.
1 Texto reelaborado a partir do prefácio escrito para o livro de
Phellipe Marcel da Silva Esteves. O
que se pode e se deve comer: uma leitura discursiva sobre sujeito e
alimentação nas enciclopédias brasileiras(1863-1973)
EDUFF. Niteroi. 2017, lançado em 2018. A tese defendida no final de
2014, contou com a seguinte banca: Vanise Gomes de Medeiros
(orientadora), Bethânia Sampaio Correa Mariani, Helena Franco
Martins, Maria Cristina Leandro Ferreira e José R. Bessa Freire.
*
Jornalista e historiador.
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